Tenda dos Milagres

A preconcepção pode confundir o ouro com uma pedra sem valor. Na obra de Jorge Amado, Tenda dos Milagres, o escritor baiano conta como o preconceito escondeu, do seu povo, o que ele tinha de melhor. Da mesma forma, o que há de melhor em nós mesmos também pode ficar comprometido com a nossa imaturidade.

A narrativa cruza dois períodos de nossa cultura: O ano de 1969, quando a história foi escrita, e a descoberta do que ocorrera no começo do século XX. A Bahia recebe a visita de James Levenson, um etnólogo norte-americano, ganhador do Nobel. Este declara à imprensa que veio à Bahia para melhor conhecer a obra intelectual de Pedro Archanjo, um “homem notável, de ideias profundas e generosas”. Diante dessa declaração, toda a imprensa entra em desespero. O personagem citado pelo visitante, como o nome mais importante da antropologia, era desconhecido do povo baiano.

Descobriram que Pedro Archanjo era um mestiço que vivia o difícil cotidiano do homem de cor no período pós-escravatura. Bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, não tinha formação acadêmica, mas sua inteligência, religião e experiência de vida transformaram-no em um homem ético, conhecedor de diversas línguas e que fez a si mesmo até tornar-se esse oculto expoente da antropologia. Nos autos da polícia da época, foi definido como “pardo, paisano e pobre – tirado a sabichão e a porreta”.

A Mãe de Santo Magé Bassã reconhece Pedro Archanjo como Ojuobá, o mais alto posto para a casa de Xangô, e o instruiu para a sua missão de sair da oralidade para ser escritor. Ela lhe diz: “o emprego é pra ter de comer, para não passar necessidade. Mas não é para te bastar nem para te calar. Não é para isso que tu é Ojuobá. Xangô ordena tudo ver, tudo saber, tudo escrever”. Pedro então se preparou para enfrentar as ideias racistas e, junto a Exú, abriu caminho para esse encargo.

Tenda dos Milagres era o nome dado ao ambiente construído para o artesão Lídio Corró, amigo-irmão de Pedro Archanjo. Nesse local, foram impressos os livros, que deixaram registrada a sabedoria do Ojuobá. A amizade desses dois era de tal lealdade que Archanjo foi capaz de suportar sua paixão por Rosa de Oxalá, amante de Lídio, sem tê-la em seus braços, como fizera com tantas outras amantes que sentiam nele o verdadeiro prazer de ser mulher.

A Faculdade de Medicina da Bahia, um imponente templo das ciências, era rodeada pelos desassistidos do Pelourinho. De lá, as teorias raciais, como a liderada por Nilo Argolo, um personagem inspirado em Raimundo Nina Rodrigues, tratava o mestiço como um fruto sem valor.

Filho de uma família abastada, Nilo Argolo defendia a superioridade da raça ariana. Nutria um ódio por Pedro Arcanjo e conseguiu a demissão do bedel, quando este apresentou um estudo da genealogia, de veracidade inegável, provando ao catedrático Nilo, e a outros que desprezavam o mestiço, o quanto eles também tinham um grau de mestiçagem, com ascendentes em negros e índios.

De acordo com Jung, a obra de arte é maior que o indivíduo que escreve. Jorge Amado constela, em “Tenda dos milagres”, não só o resultado das suas experiências e revela seu modo de ser, mas também é influenciado pelo “Espírito do Tempo”, que compensa a consciência coletiva, quando esta despenca para longe da sua finalidade de mudar o nível de consciência rumo à evolução da humanidade.

O ensaísta Antônio Candido afirma que o sonho assegura a capacidade de fabular durante o sono e que a literatura garante esse processo no período de vigília, fazendo-se o sonho acordado de todas as civilizações, em todos os tempos. Por essa razão, podemos refletir sobre nossas fábulas pessoais, ou nossos sonhos, com a linguagem metafórica que constitui a matéria de que são feitos nossos pensamentos.

Refletindo sobre essa história, a ordem antiga era a unilateralidade branca, ao passo que a nova ordem reuniu o negro e o branco. É a união dos opostos no mestiço tão necessária para mudar o nível de consciência e, assim, atender a finalidade evolutiva de uma cultura.

Em todos nós, existem, de um lado, a pobreza, e, do outro, a riqueza. Metaforicamente, pobreza é a falta de recursos para evoluir e riqueza, a criatividade que nos permite ser éticos e capazes de suportar o peso das ideias opressoras daqueles que ficaram na unilateralidade da penúria de espírito.

Quando descobrimos nosso valor pessoal, notamos que a consciência o havia omitido de nós mesmos, devido ao preconceito, quando estávamos em um nível de consciência inferior. Eram manifestações que entendíamos como não apresentáveis. A presença do “estrangeiro”, ou do que estranhamos em nós mesmos, é quem produz o espanto e nos faz correr atrás de nossa história para compreender e resgatar o valor desprezado no passado.

É o encontro com o outro, ou no encontro analítico, que descobrimos nossos valores que, preconceituosamente, renegamos. Quando sacrificamos a realização de um desejo, como Rosa de Oxalá, a grande cobiça de Pedro Archanjo. Para atender a ética, realizamos o ato sacrificial necessário, com a finalidade de uma evolução que fará surgir o homo sapiens sapiens.

É esse olhar “estrangeiro”, o estranho em nós, que nos faz perceber nossas potencialidades soterradas sob o peso do preconceito, aprendido com os nossos ancestrais. Tudo que era para permanecer secreto e oculto, por fim, vem à luz.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br