O Senhor das Moscas

Autor: Carlos São Paulo

Wilian Golding, mostra em seu romance, O Senhor das Moscas, que o homem tem uma natureza selvagem que poderá aflorar, por meio de seus medos e crenças, em qualquer fase da vida. Nessa história um grupo de garotos púberes, após um acidente aéreo, consegue chegar vivo até uma ilha desabitada do Pacífico. O impacto do acidente, do lugar desconhecido e sem a presença de adultos, fez neles surgir o Beelzabub (termo grego para definir O Senhor das Moscas) que existe em nossas bases primitivas da psique, como a se alimentar dessas sensações de aniquilamento do ego. 

A história começa com os garotos Ralph e Piggy. Eles usam uma concha que produz um som suficiente para chamar a atenção dos outros perdidos na ilha. Dentre os meninos que apareceram, destaca-se o Jack Merrideu, que desde logo demonstra uma postura oposta à do Ralph. Enquanto esse último tem fé no resgate, Jack demonstra querer se adaptar ao lugar como lar definitivo.  Os garotos realizam uma eleição e elegem Ralph como líder. Era a esperança de serem resgatados que predominava na consciência do grupo, e escondia a sombra de viverem ali para sempre – representada na liderança de Jack e a sua postura de caçador.

Ralph era a percepção Intuitiva e Introvertida do grupo. Ele foi escolhido num momento de impacto, onde os demais precisavam alimentar-se da esperança de um resgate. A sua primeira decisão foi a de construir abrigos e acender uma fogueira para chamar a atenção de navios e aviões que por ali passassem. Ao seu lado, o garoto Piggy, como assessor do líder, correspondia à atitude da consciência Extrovertida e a função Reflexiva, auxiliar da Intuição do grupo. A função Reflexiva é a função psíquica que na psicologia de Jung traz a lógica universal. Era um garoto gordinho. Enxergava mal e precisava de grossas lentes. Foram essas lentes ao sol que acenderam a fogueira e, portanto, luz para o grupo.

O tempo foi passando. A sensação de desproteção foi aos poucos ganhando terreno.  A necessidade de lutar pela sobrevivência precisava de outro líder que fosse prático como o Jack, o representante da função psíquica Sensação. A atenção do grupo agora se fixa na caça. Pintam os seus rostos e realizam rituais como nos primórdios da humanidade e como são as bases de construção de nossa psique. Era a ativação de um núcleo psicótico capaz de criar monstros e cometer todo tipo de atrocidades na defesa dos medos inconscientes dessas figuras aterradoras que habitam o nosso ser.

Ralph nota a sua fogueira apagada e sabe que a sua liderança terminou. Em seu lugar, surgiu a força da liderança de Jack. Agora era um grupo de caçadores disposto a conseguir carne para alimento e morar ali para sempre. Nesse momento ouviram um barulho amedrontador e logo materializam as figuras de monstros do imaginário grupal criando a ideia de uma ilha perigosa e assustadora. O grupo corta a cabeça de um porco e coloca-o empalado como um anti-monstro. 

Uma outra função psíquica se destaca nessa hora. Está na figura do Simon. Trata-se da função Sentimento que define os valores escolhidos na construção de uma personalidade. Simon encontra o anti-monstro e dialoga com ele, pois ele é o aspecto da personalidade que tem valores próprios e não se confunde com os valores comuns a todos. Por isso ele não acredita em monstros fétidos, cheios de moscas e tem uma atitude destemida. Descobriu que o fenômeno estranho vivido pelo grupo fora provocado por um paraquedista que caíra e se debatera até a morte. Quando conseguimos perceber nossa verdade pessoal sem confundi-la com as verdades alheias, que nos induzem a nos defender de uma ilusão, sobram energias para as nossas realizações pessoais.

Quando Simon vai avisar ao grupo o que descobriu, encontra os caçadores envolvidos no fanatismo sob a liderança de Jack. Estes o confundem com o monstro e o matam perfurando seu corpo com lanças como se estivessem lutando contra o monstro. Isso acontece quando os nossos sentimentos são confundidos com ameaças monstruosas que habitam nossa psique em momentos de pouca consciência. No entanto, esse grupo já não conseguira tal revelação devido ao estágio avançado de perturbação esquizo-paranóide.

A função Sentimento fora destruída. A seguir roubaram as lentes de Piggy. A condição Reflexiva desse grupo já não pode mais enxergar a realidade. Logo Piggy não é mais suportado e foi destruído por uma enorme pedra que bateram na sua cabeça, como a declarar o peso e a dureza da realidade nesses momentos da vida em que o desespero toma conta do nosso ser e liberta os nossos Belzebus. O grupo sem a dimensão do Sentimento e da Reflexão, tenta destruir Ralph, que é a prospecção de um futuro saudável. No entanto, os gêmeos Sam e Eric que não sabiam diferençar-se um do outro, funcionaram como um elo entre o mundo da consciência e a dimensão estúpida do inconsciente. Esconderam Ralph dos seus perseguidores permitindo a sobrevivência da esperança de um resgate.            

Finalmente os adultos chegam em seus aviões. A visão do resgate transforma todo o grupo em crianças inocentes, sofridas e carentes da proteção dos adultos para lhes auxiliar no seu desenvolvimento. Os gêmeos, essa dualidade, são os nossos sonhos que funcionam como um presente da natureza. É esse o elo capaz de unir nossos aspectos superiores da personalidade aos aspectos inferiores de nossa psique. Essa é a forma natural para conseguirmos um desenvolvimento saudável de nosso ser, prestando atenção aos nossos sonhos quando dormimos ou mesmo sonhando acordados.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@carlossaopaulo