O Homem da Areia

Por Carlos São Paulo

Um parque de diversões. Ao meu lado sentado um homem. Senti uma sensação de estranheza. Eu o havia confundido com outra pessoa de minha juventude, mas logo descobri o engano. Nossas cadeiras, a vinte centímetros da base, faziam pequenos movimentos sobre um tablado seguro. Um filme ocupava todos os ângulos de nossa visão. Nossos olhos eram as portas por onde a fantasia adentrava e usurpava a realidade provocando o medo de sobrevoar um abismo.

O homem, ao meu lado, fechava os olhos. Evitava que sua imaginação lhe trouxesse o medo de altura. Vez por outra, ele colocava uma das mãos no rosto para olhar entre os dedos. Dessa forma a cena do temor era afastada e aproximada ao mesmo tempo. Enquanto isso, as crianças se divertiam com o medo e suas fantasias de imortalidade. A consciência daquele homem sabia que era um brinquedo, porém as sensações que as fantasias provocavam no corpo era a causa da ilusão.

Essa simultaneidade entre o real e o imaginário está numa obra escrita por E. T. A. Hoffmann. Trata-­se de um conto chamado de O Homem da Areia. Freud encontrou nele um farto material para análise e escreveu um artigo denominado O Estranho”. Nessa obra o protagonista Natanael vê em um vendedor de barômetros, Coppola, a imagem de um homem que lhe assombrava na infância. Esse homem era o advogado Copellius, amigo do seu pai.

A sensação de medo foi provocada no sujeito, por um objeto psíquico que se materializou em volta dele. É o fenômeno Projeção. Mas o produto psíquico estava ativado pelo passado. A consciência dominada não conseguiu frear a ilusão de Natanael, deixando­‐o amedrontado. Figuras de nossas relações do passado podem reviver em personagens do presente. E precisamos de uma boa reflexão para notar quando essa situação se apresenta.

O conto começa com uma carta de Natanael para sua namorada Clara. Ela, ao abri-­la, percebe o engano. Ele, na realidade, escrevera para o amigo Lothar, irmão dela. Na carta ele fala de uma violenta perturbação de espírito que destrói sua mente. Ele afirma que o vendedor de barômetros é o mesmo Coppelius de sua infância, e conta o que ocorrera naquela época.

Coppelius e o pai de Natanael faziam experiências de alquimia, em casa, trancados no escritório. Para ele dormir cedo a sua mãe dizia que o Homem da Areia ia chegar. Ela fazia alusão aos olhos, como se tivesse areia, quando estamos com sono. Porém a babá lhe explicava: “É um homem perverso que chega, quando as crianças não vão para a cama, e joga um punhado de areia nos olhos delas para que saltem sangrando da cabeça. Ele coloca então os olhos num saco e os leva para a meia-­lua, para alimentar os seus filhos.” Um dia Natanael se esconde no escritório e descobre Coppelius. Ele vê um homem com feições diabólicas, concluindo quem é o Homem da Areia. Depois disso, uma explosão mata o pai de Natanael.

Clara lhe escreve de volta, na tentativa de lhe esclarecer a ilusão. Ela lhe diz que era natural que em sua mente infantil houvesse essa associação do Homem da Areia com o amigo do seu pai Coppelius. E que o comportamento misterioso se devia ao fato de eles praticarem alquimia secretamente. Isso faz Natanael achá­‐la extremamente racional e incapaz de compreendê-lo. Por isso se zanga e afasta-se de sua amada noiva.

Natanael usa um binóculo para observar Coppola de longe. Ao ver Olímpia, apaixona-­se por ela. Porém ela é uma boneca, um autômato construído por Coppola e seu professor de Física – que dizia que Olímpia era sua filha. Natanael apaixonado diz: “Ela fala pouco, mas suas raras palavras são hieróglifos de um mundo interior, onde reinam o amor e o conhecimento sublime da vida espiritual, contemplando a eternidade.” A imaginação da mulher idealizada substitui Clara, a mulher racional que contraria o seu amado.

A essa projeção de modelos do sexo oposto, Jung chamou de Anima. Natanael saiu do mundo real de Clara e entrou no mundo imaginário para amar Olímpia.

Um dia, numa briga entre o professor e Coppola, arrancam os olhos da boneca, e Natanael enlouquece e é internado num manicômio. O objeto do medo, fruto de uma recordação, se projeta na realidade até ocasionar a loucura em uma pessoa de ego frágil. Natanael é cuidado por Clara e Lothar. Recuperado, Natanael vê em Clara o Homem da Areia e tenta empurrá-­la de uma torre alta para a morte, mas é ele quem cai e morre ao confundir a imagem de sua anima com a do “Pai Terrível”.

Jung nos explica que fatores interiores em conjunção com fatores exteriores, registrados pela percepção, recebem forma e sentido ao formar imagens. Todo produto psíquico se revela em imagens. A lua, como um olho da noite, faz os objetos iluminados por ela ganharem imagens distorcidas. Dessa forma, um lençol no varal pode se confundir com alguém se movendo. Em meio ao medo natural da noite, estava o medo do desconhecido e estranho, numa consciência pouco iluminada da infância e, como a noite apenas à luz da lua, uma explosão e a morte do pai, formatou um complexo que ganhou grandes dimensões na vida adulta até a dimensão do ser “lunático”.

Vivemos a vida muitas vezes desconhecendo o mito da infância que nos confunde com a realidade. A cegueira, símbolo da inconsciência, despreza a realidade do mundo exterior.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br