Macunaíma, o herói sem caráter

Por Carlos São Paulo

Caráter é uma qualidade que define alguém. É uma palavra que surgiu para definir uma marca, símbolo da alma de uma personalidade. O que dizer daqueles que não conseguiram fazer essa marca e, se o fizeram, deixaram-se corromper? Esta palavra também explica o que apodreceu, estragou. Nossos mitos podem nos fazer compreender as tramas da natureza humana. Aquelas escondidas no fundo do mato-virgem onde habita o inconsciente coletivo e nasceu Macunaíma. Elas tanto podem impedir o desenvolvimento do ser para ter sua marca, seu caráter, como também deteriorar quando essa marca na alma é ainda tênue e pode ser estragada.

O inconsciente coletivo faculta ao homem a construção de mitos, lendas e folclores – histórias que nunca aconteceram tal qual são contadas. É como os  sonhos.  Trazem uma energia que nos propicia viver as emoções vividas nessas histórias com outras elaborações coerentes com nossa vida e cultura.

Mario de Andrade escreveu Macunaíma, o herói sem caráter. Macunaíma é uma espécie de anti-herói, malandro, desonesto, preguiçoso e irresponsável. Devido às circunstâncias traumáticas de sua origem, fica impedido de realizar o que Jung chamou de Processo de Individuação, onde o Eu se sacrifica por algo maior e carrega uma história de respeito, dignidade e honra.

O narrador da história era um homem que foi para Lisboa, depois de ouvir de um papagaio “verde de bico dourado”, que “preservava do esquecimento(…)” as frases do herói. O papagaio é uma ave de fala repetitiva e sem raciocínio. Walt Disney personificou a figura do brasileiro num papagaio desajeitado, preguiçoso e malandro que compensa seus fracassos com fantasias megalomaníacas: O Zé Carioca.

Macunaíma era filho do medo da noite. Sua mãe, uma índia tapanhumas, gritou ter parido uma criança feia. Não teve pai. O que viveu, de nada adiantou. Capenga e mendigando comida, fica aborrecido e decide ir para o Céu, virando a constelação Ursa Maior, que brilha inutilmente. A primeira frase do Epílogo foi: “Acabou-se a história e morreu a vitória.”

Por analogia podemos dizer o Brasil com uma ferida profunda em sua origem. A mãe índia foi “estuprada” pelo pai colonizador que impôs a religião e o comportamento. Esse pai só buscava o prazer carnal e a riqueza que a mãe terra poderia lhe oferecer. O brasileiro “abandonado pelo pai” aprende desde cedo a não respeitar as regras da lei e da ordem. Não há imagem adequada para o seu espelhamento.

Nosso herói sem caráter, ao receber da cotia o caldo envenenado de aipim, por ter enganado o curupira, afastou-se e só conseguiu livrar a cabeça. O resto do corpo que molhou ficou adulto, enquanto a cabeça continuou infantil. Essa é a metáfora do mito do herói sem caráter. Assim podemos entender que todos aqueles que cresceram, mas suas cabeças permaneceram guardando a forma pouca elaborada de pensar, como buscar levar vantagem em tudo, se afastam do que é ser o verdadeiro herói.

O verdadeiro herói é aquele que tem caráter, ou seja, pode se revelar ao outro tal qual ele é sem a necessidade de se sentir “bobo”, “esperto” ou “babaca”. É um homem que não pode ser subornado por dinheiro, por sexo ou pela promessa de fama. É capaz de vencer obstáculos como condicionamentos neurológicos, bioquímicos, mentais e relacionais. Tem uma cabeça adulta o suficiente para deixar seu mundo conhecido da infância e, auxiliado por um mentor, encontrar um mundo especial para viver e trazer sua experiência para o outro.

O Eu nos dá uma identidade e estabelece um elo entre a sua condição biológica que o faz existir como uma estrutura que imagina a si mesmo e também supõe como está sendo visto pelo outro. A partir da forma como se vê imaginado, monta seus mecanismos para enganar o outro e atender ao ideal dentro de um grupo social. Para não serem imaginados como “bobo”, assumem o papel de “esperto”. Por isso estamos sempre imaginando como o outro nos imagina. E quando imerso numa sociedade em que ser esperto é corromper ou aceitar a corrupção como meio de sobrevivência, aqueles que ficam indignados serão considerados “babacas” e raramente se sentem recompensados por sua honestidade.

Denise Ramos (ph.D.) acredita que a corrupção seria um comportamento compensatório a um sentimento de inferioridade marcante. Nelson Rodrigues nos diz que: “O brasileiro continua sendo aquele Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. A nossa tragédia é que não temos um mínimo de autoestima”. Ninguém respeita o outro se não respeitar antes a si mesmo. Nascer, viver e morrer com dignidade e honra é a meta de quem tem respeito por si mesmo.            

Macunaíma recebe da mãe do mato, Ci, um amuleto que o protege e lhe dá sorte, que é a pedra muiraquitã. Tal como a pedra filosofal, ela traz o sagrado que o nosso herói perde por ser um incapaz. Essa é uma pedra que, para os alquimistas, reunia todas as diferenças para formar uma unidade. Essa é a metáfora de nossa unidade social que o povo brasileiro ainda precisamos encontrar. Ai existirá um só povo e uma só raça. O índio, o negro e o estudante de escola pública não precisarão de cotas.  Todos terão o direito de partilhar dessa unidade que recupera os valores perdidos da cultura brasileira, como a  prioridade na educação, para a reconquista de verdadeiros heróis no papel de educadores.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@carlossaopaulo