O Juízo

Por Carlos São Paulo

Como juiz, ele decidia o destino de muitos homens. Saboreava o poder de decidir. Naquele hospital, no entanto, era apenas o “AVC do 12”. Os médicos agiam como muitas vezes o magistrado fizera com o réu no tribunal, ao se reportar aos autos esqueciam de sua humanidade.

Com a vida ameaçada, o Meritíssimo respirava com um esforço de quem carrega a pesada pedra da dúvida. Ainda alcançava olhar os ruidosos aparelhos com aqueles desenhos que mais pareciam escrever o veredicto que o deixava como um réu diante dos médicos e seus aforismos.

As imagens do passado visitavam a sua memória a partir das histórias recentes e descambavam para um tempo mais longe: o tempo da infância. Assim, a ponta do começo de uma vida se unia à do fim, e formavam essa enigmática figura geométrica do círculo que não tem princípio e nem término. Tudo é eterno.

Ali, deitado, avaliou o que teve validade na vida. Parecia mostrar, em seu rosto, o pavor de quem viveu de aparências no desempenho do seu trabalho, no casamento e nas relações sociais. A vaidade era seu alimento e a convicção sua prisão.

Um dos seus médicos se destacava por uma presença mais constante e por sua juventude. O acamado ficava a contemplar aquela beleza da mocidade, ao tempo que sentia a brisa suave da primavera com o seu cheiro de flores que logo murchavam, depois de mostrar sua beleza.

Ele ouviu alguém chamar aquele enigmático médico jovem de Dr. Jairinho. Este lhe dizia alguma coisa ao ouvido. A voz era de alguém que lhe falava algo quase inaudível e, ao mesmo tempo, tão pesada e colorida como o chumbo.

Agitado, o Meritíssimo se perguntou: “teria sido um sonho? Continuou em suas reflexões a se perguntar o que pode fazer sentido para uma existência. Naquele momento, imaginou as estrelas e o quanto nos encantamos com a sua imensidão, sem nos interessarmos por sua distância. São apenas pontinhos luminosos guardando todos os segredos do universo. Talvez, por isso, dizemos às crianças que, quando alguém morre, “virou uma estrelinha”. Essa é uma maneira saudável de ensiná-las sobre a eternidade. Aquela pessoa está em algum lugar tão distante, que, só por meio da saudade, chegamos até lá.

O Dr. Jairinho continuava a lhe falar ao ouvido sempre que ia visitá-lo e estavam a sós, mas sua audição não fazia distinção. Em um desses dias, o juiz acordou com um pesadelo em que todo o cemitério tremia e as sepulturas deixavam os mortos saírem, apontando o dedo em sua direção enquanto um deles, uma mulher, cantava o Réquiem, de Mozart. Esse sonho aconteceu logo depois que ele escutou do médico enigmático o nome Rosa Malena. Esta era a desencarnada que cantava.

Em um mundo em que tudo passa e se degenera, o que haverá de estável, real e eterno? Perguntava a si mesmo, ao tempo em que se contorcia como se fosse um esforço para ter a resposta. Talvez estivesse querendo conseguir o perdão dos seus atos, enquanto a vida se dissolvia em mistério.

Voltou a acordar de outro sonho em que Rosa Malena aparecia vestida de preto e com as mãos postas como a venerar o ventre. Aquela que foi sua amante e, ao ficar grávida, sofreu a dor do desamparo.

O jovem médico estava de volta. O paciente olhava e começava a entender quem era aquele jovem. Dessa vez, o moribundo juiz, enquanto o doutor aplicava a injeção, escutou com a nitidez que nunca tivera antes:

– Amanhã irei ao cemitério assistir sua cremação.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@carlossaopaulo