A invasão da serpente : um caso de pedofilia

Edimea Rocha da Silva do Val*

(artigo baseado em relatos de uma cliente, numa carta para seu abusador).

Maria* sonhou com uma serpente invadindo sua casa. Um sonho que a fez lembrar do tempo em que o sol ia nascendo, todos os dias, na sua cidade e também nela, havia um solzinho começando a surgir, por dentro, anunciando o seu desabrochar! Sozinha no seu mundo interno, porém, quando o tempo era para aprender as mil coisas da vida, certa vez, o sol de fora desapareceu, assim, de repente… Pois o sol de dentro também se pôs.

CARTA

“Ela, a minha menina ferida, disse “Não”, mas ele insistiu. Ela não queria, então ele persistiu e a encantou, falou coisas de “amor”. Como numa magia a fez sua. Mal ela sabia sobre si, sobre o seu corpo, e este aparecia cada vez mais, a fazendo Mulher. Ela atravessou a fronteira do desconhecido, não se percebeu mudando e nem percebeu ele, se aproximando da sua casa e a invadindo, como na serpente do sonho, que a apavora. Deixou-se levar pelas sensações e tudo doeu, o antes, na fantasia, a fissura, o durante, no corpo, a dor pélvica, o depois, na mente, a angústia. Dói porque depois do prazer, uma menina sente culpa, sente medo, se sente impura, não quer mais frequentar a igreja. Não se sente adequada e nem digna do amor de Deus, ela acredita que pecou.

A menina, ainda na puberdade, com tão pouca idade, era muito carente, de afeto paternal, principalmente. Tinha carência social, cultural e material, num contexto de vida humilde, sem oportunidades. Por que você não se controlou? Não pensou nela, como faz um protetor? Você só não pensou, não parou seus pensamentos na direção da menina. Você foi algoz, perverso, pequeno, desonesto, errado, insensato, ingrato, cruel, traidor, conservador, hipócrita.

Reproduziu o que estava posto em nossa sociedade, o que esperavam de você, com seu jeito e ideologia de viver. Você não resistiu e tratou logo de seguir seus instintos, impulsos, caprichos e desejos. Não a ouvia, sua voz era fraca, delicada, e boca trêmula, você a silenciou. Você ganhou uma confiança que não merecia. Ela cresceu, amadureceu, fez terapia, percebeu o jogo. Descobriu que não deve mais se culpar. Ela foi uma vítima. Foi vítima de um sistema arcaico, bizarro, de apropriação de corpos. Não pedem permissão, usam a persuasão, a ilusão, despertam nelas, ainda crianças, o desejo. As amedrontam, as atormentam, não aceitam o não, mesmo que tenha sido com voz fraca, de dúvidas. Canalhas é o que vocês são! Deveriam estar na prisão ou curem-se, de uma vez, dessa pedofilia”.

_______________________________________

Edimea Rocha da Silva do Val – Pedagoga (UFBA). Foi Regente de sala de aula no ensino fundamental I. Orientadora do Método KUMON de ensino individualizado. Especialista em Psicopedagogia (IJBA) e em Arteterapia (IJBA, ASBART 0248/1221).