Sobre Covid, Clarice e Pássaros

O dia nasce pesado, cinzento, contrastando com o azul brilhante do céu de Salvador. Atualizo o número de mortes por Covid-19 no Brasil — mais de 295 mil. A dor tem peso real e se antecipa aos números, constato, ela é um sopro invasivo e não precisa de atualizações. Olho o relógio e vejo que estou atrasada para o trabalho. Apresso-me a engolir um café, trocar de roupa e correr para o elevador. Ao apertar o botão, lembro que não haveria trabalho, que a cidade estava fechada, que a vida estava fechada, e não teria, por enquanto, aqueles indiferentes bons-dias, muitos dos quais sem respostas, que costumavam recepcionar as minhas manhãs, sem falar nas tentativas de diálogo pelos mais animados: “nossa, que calor!” Então o elevador chegava ao seu destino final e cada um corria para o rodopio das suas labutas.

Confesso que já no parágrafo anterior constatei uma estranha saudade daqueles dias, mas precisei de alguns segundos para acreditar no que estava sentindo. Quase o encerrei com um — bons tempos aqueles! Fui salva pelo clichê, e ganhei segundos preciosos que me trouxeram à lembrança os sorrisos amarelos, os elogios falsos, as bajulações evidentes, as desculpas esfarrapadas, os interesses mesquinhos enfeitados por um belo sorriso, as hipocrisias de cada dia… A virtualidade da vida estaria alterando o meu sentimento sobre as interações humanas? o meu olhar sobre os mecanismos que ela própria utiliza para gerar os seus movimentos?

Quando estava quase a responder às perguntas plantadas no final do parágrafo anterior, ocorreu-me a frase de Clarice Lispector: “Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.” Grande Clarice, sempre arrancando as minhas máscaras, sempre me levando a ultrapassar as minha zonas fóticas, sempre me conduzindo para o aquém e o além do que penso ser…

Já me precipitava às perguntas abandonadas no parágrafo anterior ao anterior (perdição provocada, pelo menos em parte, pela lembrança de Clarice, que também tem o dom de me desviar de mim), quando um bem-te-vi resolve entrar em cena e me fazer companhia — bem-te-vi!, cantava —, bom-que-te-ouvi, meu coração respondia. Em algum lugar sorria Clarice; bom-que-ouvi!


Texto de Cristina Sobral