Restos do Carnaval

Restos do Carnaval é um conto de Clarice Lispector publicado em Felicidade Clandestina. Uma mulher, após o carnaval, tenta entender porque sua memória a arrastou para a infância e para as quartas-feiras de cinzas quando, em lugar do barulho das ruas, entrava o silêncio; e no lugar da devassidão da festa, passavam beatas a caminho da igreja com um véu lhes cobrindo a cabeça, em meio às ruas desertas do Recife, pisando nos despojos de serpentinas e confetes.

Nesse conto, uma criança de oito anos tinha o desejo em não ser ela mesma. Para isso precisava que alguém se ocupasse dela para fantasiá-la. As irmãs se empatavam com a mãe doente e só lhe restou assistir, com os olhos da inveja, a uma outra mãe enfeitar sua filha com papel crepom transformando-a em uma rosa. Quando estava prestes a realizar seu sonho em também ser transformada numa rosa, pelas sobras da fantasia de sua amiguinha, foi interrompida pelo jogo de dados de um destino impiedoso e talvez irracional. Ela tivera que sair às pressas para comprar remédios, pois sua mãe havia piorado.

Com a melhora da mãe, podia voltar ao carnaval. Mas perdeu o encantamento. Não era mais uma flor e sim uma simples menina triste. Horas depois, um menino de doze anos, que para ela já era um rapaz, fê-la sentir-se reconhecida e dizer para si mesma: eu era, sim, uma rosa.

O carnaval é um momento que nos permite viver as múltiplas personalidades que nos habitam. Em cada mascarado, as figuras encantadas do seu mundo interior brincam de ultrapassar as limitações que a realidade impõe. Nossa personalidade mais rígida cede lugar às emoções e superam a fronteira final para materializar a fantasia que se libertou de nossa imaginação.

É a saudade que nos transporta para um passado conectado com o presente e, por analogia, lembra o que foi vivido e muitas vezes a veicular a poesia e a conveniência das modificações. É quando a imaginação supera a realidade. Uma fantasia pode transmitir um desejo secreto que não consegue se realizar ou então trazer o lado obscuro que a personalidade evita que seja identificada.

Whitmont, um autor junguiano, diz:

“não viveremos plenamente a não ser que possamos viver como se cada momento a ser vivido fosse o último, e ao mesmo tempo como se o período de nossa existência fosse infinito”.

A Psicologia Analítica considera importante o indivíduo suportar, em consciência, a tensão entre os opostos até que surja uma novidade. Dizemos que são opostos aos dois aspectos irreconciliáveis de uma mesma realidade. Assim, a festa carnavalesca traz o seu aspecto profano e precisa conviver com o sagrado da quarta-feira de cinzas. Da mesma forma que as alegrias do cotidiano necessitam conviver com os dissabores das frustrações.

Na história, uma menina de oito anos quer se tornar mulher. Ao mesmo tempo que uma mulher adulta se sente tragada pela menina de oito anos que lhe habita. Ela lembra que se tornou uma rosa depois de se despojar e doar adereços falsos feitos de papel crepom. É quando a sensualidade de uma mulher não depende da sua falsa persona, feita de “papel”, e sim da beleza em verdadeiramente ser mulher. Ser uma rosa é exalar o misterioso perfume do ser feminino para fazer surgir o masculino que a transforma numa rosa.

Dentro de cada mulher tem um feminino em desenvolvimento que talvez apareça em seus sonhos como uma menina de oito anos à procura de um menino de doze anos que lhe dê rosas. Muito se tem falado de rosas. Seu perfume, seus espinhos, sua natureza mítica que lembra amor e feminilidade. É a rosa que aparece em botão e se abre adulta para cumprir seu ciclo. Dessa forma um verdadeiro casamento acontece.

A mãe doente é uma metáfora de um aspecto internalizado por uma mulher que se vê interditada em sua possibilidade de viver plenamente a realização dos seus sonhos e fantasias. A mãe saudável permite a realização de nossos sonhos, mesmo com o uso das sobras do que restou de bom em nossas vidas. É essa parte saudável que vai propiciar o encontro com o outro numa experiência de epifania.

Dentro de cada mulher pode ser vivido um materno saudável que não lhe escraviza no afeto; como também o materno doente que tenta impedir o crescimento e a realização como fêmea. Assim parece também acontecer com a humanidade. Quando estamos com o arquétipo da Grande Mãe doente, tudo viram cinzas e não podemos falar de flores.

Talvez a Grande Mãe do brasileiro seja uma mãe negra como a Nossa Senhora Aparecida. No entanto, olhando para o mundo – e sua humanidade – enxergamos um feminino doente.

O movimento hippie trazia as flores nas roupas e coloria esse mundo propagando o pensamento de amor e paz. Era o feminino em sua luta para sobreviver em nossa humanidade. Mas tudo se fez cinza e, o masculino invasivo, depois da rosa de Hiroshima, trouxe as bombas do terror.

A humanidade agora funciona como uma legião. Homens e mulheres gritam alto, por meio do som das explosões das bombas do terror, para desmanchar as rosas e, em seu lugar, trazer os símbolos de um masculino descasado do feminino acolhedor, humanizador.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br