O Trabalho como Dom ou Maldição

Não considerar a motivação do lucro, o desejo de possuir, o ideal de salários justos e da justiça econômica, a amargura dos impostos, as fantasias da inflação e da depressão, o apelo da poupança; ignorar a psicopatologia da negociação, da cobrança, do consumo, das vendas e do trabalho, e ao mesmo tempo pretender olhar para a vida interior das pessoas em nossa sociedade, é mais ou menos como analisar os camponeses, artesãos, damas e cavalheiros da sociedade medieval, ignorando a teologia cristã.

(James Hillman)

A Perspectiva do Trabalho como um Dom

Tido como uma atividade de primeira importância para possibilitar a perpetuidade da raça humana, o trabalho se enquadra em duas dimensões de análise para uma adequada apreensão de sua essencialidade. Em um primeiro nível de observação, a atividade laboral é vista como provedora das necessidades materiais inerentes ao ser vivo para manutenção de sua sobrevivência. Em outro nível, observa-se que, diferentemente dos outros animais habitantes deste planeta que têm que lutar por sua sobrevivência através da satisfação de suas necessidades biológicas mínimas, o ser humano, ao labutar para atender suas carências de ordem material, também contribui para a construção do ambiente social do qual participa, condição que contempla um processo de socialização e uma atribuição de sentido para o que ele faz, influenciando, assim, a formação de sua identidade individual e adicionando uma razão para sua existência como pessoa.

Em uma concepção de domínio público, trabalho é tido como uma atividade desenvolvida pelo ser humano para gerar riquezas, garantindo sua sobrevivência pela satisfação de suas necessidades (OLIVEIRA, 1991). Por uma outra perspectiva, conforme a abordagem sócio-psicológica de Lévy-Leboyer (1994), trabalho é considerado um meio privilegiado de inserção social do indivíduo – o vínculo mais forte com a realidade – atribuindo-se às experiências relativas à atividade laboral o papel de construção da identidade e da personalidade individual, o que implica o fato de que, ao se transformar o trabalho em uma atividade secundária, estar-se-á interferindo na socialização e no desenvolvimento da personalidade do indivíduo.

Indo por esse caminho, Gorz (2003) observa que o trabalho, em consonância com sua conceituação elaborada pela modernidade, tem como característica fundamental ser uma atividade desenvolvida na esfera pública que, por ser requisitada e tida como útil por outros, tem como contrapartida uma remuneração. No enfoque do autor, essa atividade possibilita o indivíduo construir uma identidade social por meio de uma profissão e participar de uma rede de relacionamentos em que são estabelecidos direitos e deveres, sendo o trabalho considerado como o elemento mais significativo do processo de socialização do ser humano. Mais do que uma mera busca pela satisfação das necessidades materiais de sobrevivência, a relação do indivíduo com o seu trabalho representa uma oportunidade ansiada pelo mesmo de poder sentir-se útil através de uma contribuição direta e  orgulhar-se de uma realização diferenciada, considerando-se que o trabalho é fundamental para a integridade psíquica e social do ser humano por representar uma fonte de referência essencial para a pessoa (FREITAS, 2002b).

A concepção de trabalho como uma obra realizada faz com aqueles sem condições de participarem dessa realização possam se sentir inúteis e mesmo sem estímulo para viver, conceito que reforça a teoria de que o trabalho confere uma identidade social ao indivíduo (SANTOS, 2000). Pode-se compreender melhor essa situação através da constatação de Caldas (1999) que o indivíduo ao perder o emprego pode ser envolvido por um sentimento de “mutilação” de aspectos elementares constituintes do seu eu – mais profundos do que somente o rompimento das fortes ligações com a empresa -, desde que, por vezes,  as pessoas se tornam o que são pelo que fazem, em adição ao fato da organização (ou um papel organizacional) ser atualmente utilizada como referencial para uma grande parte dos significados constituintes da realidade construída pelas pessoas. Em adição, Santos (2000) assinala que, desde que o valor social do trabalho também influencia o imaginário social, o indivíduo que não trabalha pode passar a ser tido como um apêndice da sociedade para quem são direcionadas, dependendo da época, ações de menosprezo ou assistencialistas.

Dessa forma, ao se considerar o trabalho como mais do que simplesmente um instrumento para desenvolvimento das entidades de caráter econômico, ou mesmo sem fins lucrativos com o objetivo de propiciar a operacionalidade da sociedade, apreende-se a dinâmica laboral como um processo constituído de uma dimensão subjetiva mais profunda do que aquelas que geram os resultados materializados, a qual contribui de forma preponderante para fornecer um sentido à existência de cada indivíduo e possibilitar sua integração plena no contexto de mundo do qual participa, constatação que implica uma atribuição de responsabilidade social de grande relevância para as entidades de qualquer natureza como fontes provedoras dessa atividade humana.

A Perspectiva do Trabalho como uma Maldição

Desperta grande interesse a investigação do comportamento humano nas organizações com a intenção de se discernir aqueles fatores concernentes ao ambiente e ao modus operandi organizacional que afetam a motivação das pessoas. Dessa forma, a análise que tem o trabalho como objeto de estudo vislumbra essencialmente descortinar alternativas de como fazer com que o indivíduo, ao sentir uma maior satisfação no exercício de suas atividades produtivas, possa desenvolvê-las com cada vez maior eficácia. Uma outra dimensão de interesse nesse estudo do comportamento organizacional vai além dos fatores motivacionais, ampliando o escopo de análise para incluir aspectos relativos a comprometimento. Nesse sentido, procura-se avaliar os fatores que despertam no indivíduo uma espécie de devoção para com os objetivos de seu trabalho e, de uma forma mais ampla, para com os ideais da organização, na esperança de se atingir um estado de espírito que vai além da satisfação pessoal, obtendo-se, em adição, um nível adequado de engajamento ideológico do indivíduo com as diretrizes fundamentais da organização.

Na percepção de Kets de Vries (1996), os estudos desenvolvidos sobre o comportamento organizacional abrangem diversas teorias sobre a motivação do ser humano que buscam explicar como as necessidades deste influenciam as suas ações, na expectativa de que se for possível compreender o fator mobilizar da atuação do indivíduo poder-se-á influir sobre o rendimento do mesmo. Infelizmente, ainda na visão do autor, as diversas teorias de motivação existentes não explicam satisfatoriamente o comportamento das pessoas, sendo muitas delas fundamentadas em hipóteses simplistas do ser humano e apresentando construções conceituais incompletas através de uma abordagem que, não contemplando adequadamente o psiquismo (universo mental) do indivíduo, concebe a natureza humana de uma forma mecanicista bidimensional e chega a resultados muito pouco conclusivos.

A influência do trabalho na saúde integral do ser humano constitui um enfoque de alta relevância dos estudos de comportamento organizacional. Por um lado, investiga-se, como visto, o trabalho como um fator de grande essencialidade para o pleno desempenho do papel do indivíduo como pessoa – contribuindo para a formação de sua identidade própria – e como ser social – atribuindo um significado para sua atividade laboral, auxiliando, dessa forma, na sua estabilidade psicossocial como ser humano. Por outro lado, avalia-se o trabalho como uma atividade com grande potencial de causar danos à saúde física e mental do indivíduo, atividade esta que tem seus aspectos negativos agravados como uma decorrência do processo civilizacional de cunho irracional que tem resultado no acirramento desenfreado da competitividade mercadológica do mundo contemporâneo.

Partindo do princípio de que os objetivos de quem trabalha são da mesma ordem daqueles da empresa – a busca por produtividade e satisfação de necessidades como elementos de um todo sistêmico que atua em um cenário único -, Bergamini (1982) assinala que, uma vez constatado que os objetivos dessas partes são conflitantes, é possível se concluir por um desajuste na organização ou no indivíduo, complementando que a empresa pode situar o indivíduo em uma condição tão destoante das necessidades humanas que o levará a um processo de neurotização, ou, alternativamente, a empresa pode constituir um meio de satisfação do indivíduo, a depender das condições organizacionais estabelecidas. Nessa linha, o pensamento exposto por  Dejours (1996, p. 150) “Beneficiário da produção, o homem é, amiúde no mesmo movimento, vítima do trabalho” traz à tona o paradoxo representado pela situação que, ao se considerar o lado de fora da empresa, os objetivos da produção representam promessa de felicidade, enquanto que para o lado de dentro tais objetivos sinalizam com frequência promessa de sofrimento, sendo, entretanto, ponderado que as relações entre sofrimento e organização não são sempre determinísticas ao se considerar que o trabalho pode ser fonte de prazer e mediador de saúde para o indivíduo.

Uma visão mais pessimista a respeito da atividade laboral é apresentada por Spink (1992) ao sustentar que cada vez mais se reconhece que trabalho não é necessariamente uma atividade saudável para o ser humano, considerando que sua propalada condição enobrecedora para o indivíduo pode não passar de uma ideologia carente de fundamentação antropológica. Na opinião do autor, atualmente se tem uma maior clareza da relação causal entre certas características do trabalho e as agravações psicossomáticas do trabalhador nas mais diversas categorias ocupacionais, havendo, no entanto, falta de coragem nos escalões superiores de muitas organizações para assumir essa condição como verdadeira. Em um contexto mais amplo e mesmo ponderando que alguns consideram a condição humana nas organizações como sendo satisfatória, Chanlat (1996) alega que certos estudos fornecem indícios de que o ambiente organizacional é um lócus propício ao sofrimento e mesmo ao desespero em todos os seus níveis estruturais. Esse último autor sustenta que a racionalidade instrumental impera no mundo atual onde as categorias econômicas são estreitamente definidas, fazendo com que nas organizações as pessoas sejam, na maioria das vezes, consideradas apenas recursos que, como acontece com recursos materiais em geral, se busca a otimização de uso, havendo assim uma subordinação da condição humana ao mundo material e à racionalidade econômica.

Por meio de uma abordagem mais ponderada, Moscovici (2000) assinala que as consequências negativas do estresse causado pelo trabalho apresentam evidências de que são de menores proporções quando a atividade laboral oportuniza desafios, autocontrole sobre as ações e elevado envolvimento emocional. Como afirma Dejours (1992), queixas contumazes de trabalhadores referem-se ao sentimento de uma atuação robotizada que não faz uso da imaginação ou inteligência das pessoas, assim como ao sentimento de uma falta de finalidade do trabalho que é reforçado pela não percepção do significado da tarefa em si no contexto global das atividades da empresa, adicionando que as pessoas reclamam de uma falta de significação humana de seu trabalho, sendo raras as situações em que as mesmas acreditam que haja uma contribuição social embutida em suas tarefas. Tendo esse cenário em mente, pode-se compreender o argumento de Bastos e Borges-Andrade (2002) de que o êxito das mudanças organizacionais é em grande parte dependente das estratégias que são utilizadas pelas organizações para lidar com o comprometimento do trabalhador, buscando o compartilhamento de valores, objetivos e políticas que assegurem o equilíbrio entre as trocas realizadas por essas partes.

Explorando uma outra perspectiva nos estudos de comportamento organizacional, Chanlat (2000) ressalta que a afetividade – uma manifestação essencial das relações com o outro –  contribui para a qualidade das interações entre as pessoas componentes de um grupo social, fato que é frequentemente relevado no ambiente organizacional pela não percepção de que a afetividade influencia a dinâmica coletiva e, portanto, a qualidade do trabalho.

Conclusão

Sendo inconcebível se vislumbrar, no atual estágio de desenvolvimento da humanidade, um mundo social sem trabalho – na perspectiva do trabalho como um dom – percebe-se, como um requisito precípuo na relação capital-trabalho, o cuidado com a garantia da dignidade humana através da proteção do indivíduo contra os malefícios decorrentes da busca desenfreada por uma lucratividade que seja socialmente irresponsável e inconsequente – na perspectiva do trabalho como uma maldição.

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ABSOLON MACEDO (www.absolonmacedo.com.br) – Engenheiro, Especialista e Mestre em Administração, com Extensão em Gestão pela University of Waterloo/Canadá;  Pós-graduações em Psicologia Geral e Analítica das Organizações, em Filosofia Contemporânea e em Sociologia do Trabalho e da Saúde Mental;  Formação em Psicologia do Comportamento Social no CAPT-OKA/EUA, com Treinamento nos Institutos Junguianos de New York, Washington, Texas, Florida e Cleveland/EUA;  Qualificação e Certificação para aplicação do MBTI – Tipos Psicológicos (Steps 1, 2 e 3) e do PMAI (Estrutura Arquetípica) pelo CAPT/EUA, e do EQ-2.0/EQ – 360 (Inteligência Emocional) pelo MHS/EUA; Consultor e Professor de Pós-Graduação de Filosofia do Comportamento Humano e de Liderança e Comportamento Organizacional.