O Curador Integral

“Platão compreendeu que o corpo não é curado com o corpo mas com a alma,  e não só com a alma do paciente mas também com a do médico” (Giovanni Reale)

A palavra “ciência” deriva do latim “scio”/”scire” (“cortar”/“esmiuçar”) assim como “diabólico” vem do grego “diaballein” (“separar”, “compartimentalizar”). Nos tempos contemporâneos, percebe-se uma tendência crescente de hiperespecialização da medicina em que o indivíduo (“in” + “dividere” = “não” + “dividir”) é segmentado em partes cada vez menores de atenção, perdendo-se paulatinamente a visão de sua complexidade (“complexus” = “o que é tecido junto”) como um ser integral. Em adição, ocorre uma nefasta divisão entre os lados científico e espiritual da cura, desconsiderando-se a realidade de que sem um adequado reconhecimento da base espiritual de ambas a doença e a saúde os resultados permanecem questionáveis. Como dito por Hillman, “A outra metade da patologia pertence aos Deuses. Patologias são ambos fatos e fantasias, ambos somático e psíquico… negligenciar esse componente psíquico, o Deus na doença, é negligenciar o humano”. (1)

A “Justa Medida” do Ser Integral

A medicina grega antiga considerava toda doença, física ou psicológica, como resultante da ausência de harmonia na pessoa. Nesse contexto, Reale exalta em especial Platão como grande conhecedor da medicina de seu tempo e como detentor de “algumas intuições de extraordinário alcance, e com um núcleo verdadeiro que, em certo sentido, permanece bastante válido para o homem de hoje”. (2) Enfatiza-se que Platão extraiu o conceito de “saúde” da medicina antiga, elevando-o ao mais alto grau especulativo conforme sua elaboração no “Timeu” como “proporção” e “justa medida” do organismo. Para esse filósofo, considerado por Jaeger como o “pai da psicanálise” (3), as enfermidades são entendidas justamente como uma ruptura da “justa medida”. E no caso do homem a “justa medida” mais importante, da qual depende em última análise a saúde, é aquela que deve ser instaurada entre corpo e alma, porquanto da falta de medida entre esses dois componentes derivam grandes enfermidades. No seu “Cármides”, diz Platão: “Todos os males e os bens para o corpo e para o homem na sua totalidade, nascem da alma…”

Referindo-se ainda à perspectiva da medicina grega antiga, Sanford conclui que “saúde seria plenitude, o que significa uma unidade orgânica e equilíbrio de todas as forças pertinentes à pessoa”. (4) Vale aqui ressaltar que em diversas outras culturas antigas também se considerava a doença como um sinal de que a harmonia da pessoa consigo mesma e com o universo havia sido alterada. Assim, o ser humano integral era o foco da atividade curativa do cuidador desde que se acreditava que se a pessoa se tornasse plena novamente ela seria curada de sua moléstia – “inteiro” e “curado” seriam palavras sinônimas: quem foi curado tornou-se inteiro.

Podemos apreender melhor o conceito de “doença” procurando entender, através da etimologia, o significado de “saúde”. A palavra “saúde” em inglês – “health” – é derivada do vocábulo do saxão antigo “hal” do qual originou-se o termo da língua inglesa “whole” (“inteiro”, “completo”, “todo”). Assim, quando se diz “hello” para saudar alguém nessa língua tem-se a esperança de que a pessoa esteja “plena”. Por sua vez, na língua alemã, quando alguém perguntava ao outro a respeito da natureza de uma doença dizia “O que falta a você?”. Dessa forma, o conceito de “saúde” parece se relacionar diretamente com “totalidade”, “completude”, “inteireza”, “plenitude”.

A concepção de saúde para Platão, como visto, já considerava o homem em sentido global: como não se pode curar um órgão ou uma parte do corpo humano senão mantendo sob controle o corpo no seu conjunto, da mesma forma não se pode curar o homem na sua inteireza sem curar também a alma, devendo, assim, na concepção desse grande filósofo da Academia, o homem “concordar a harmonia do corpo com a da alma” para obter uma única concordância.

Plenitude implica algo orgânico, suscitando a ideia de muitas partes separadas trabalhando juntas de uma forma integrada. Podemos imaginar o corpo humano como um bom exemplo de plenitude orgânica desde que suas partes são todas apropriadas para funcionarem em conjunto e constituírem uma unidade harmônica. Dizer que a totalidade do corpo é orgânico significa dizer que quando qualquer uma de suas partes constituintes falha o corpo como um todo sofre as consequências dessa falha.

O mesmo acontece com a psique, sendo esta tão complexa quanto o corpo. Caso alguma parcela de nossa natureza genuína seja negada nós também sofremos como um todo. Uma vida criativa não realizada torna-se envenenada – a natureza humana quando desvirtuada providencia a sua própria vingança – residindo aí o potencial para a patologia.

Desde que a psique e o corpo não constituem realidades separadas, mas juntas perfazem o ser humano integral, uma desordem física afeta nossa psique da mesma forma que uma disfunção psíquica altera a saúde do corpo como já bem investigado pela medicina psicossomática. Conclui-se que o ser humano pleno é uma extraordinária unidade do corpo e da psique, sendo a pessoa saudável aquela em que todas as suas partes constituintes estão funcionando em harmonia.

Dessa forma, a doença pode ser uma parte necessária do desenvolvimento da pessoa – esta pode não atingir seu desenvolvimento máximo possível até ter adoecido de alguma forma – o que explica o fato de que algumas vezes uma doença, psicológica ou física, seja um convite para a pessoa se tornar plena, e frequentemente essa doença só é efetivamente curada quando tratada sob essa perspectiva.

O Curador Divino

No mundo antigo da Grécia e Roma havia uma instituição especialmente dedicada para a cura: o culto de Asclépio. O mito relacionado com esse deus atribui sua origem a um caso de amor entre Apolo (deus da música e também o que envia a doença e a cura) e a mortal Corônis que foi engravidada de Asclépio por Apolo. Corônis foi posteriormente liquidada a flechadas por Ártemis, a pedido do seu irmão gêmeo Apolo, como vingança por aquela ter desejado casar-se com o mortal Ísquis. Porém, quando o corpo de sua ex-amante foi colocado numa pira funerária, Apolo lembrou-se de seu filho e rapidamente deslocou-se do céu e extraiu da barriga de Corônis essa criança que estava destinada a se tornar o grande médico Asclépio.

Apolo confiou a educação de seu filho ao Centauro Quirão (filho de Cronos, preceptor de Aquiles e de Jasão, e considerado na Grécia arcaica como um grande médico) de quem Asclépio aprendeu a arte de curar. Além disso, Asclépio recebeu um presente especial da deusa Atená que lhe ofereceu o sangue da veia da Górgona Medusa. O sangue que fluía do lado esquerdo de Medusa trazia a morte enquanto que o que fluía do lado direito trazia a cura, sinalizando, através do paradoxo da qualidade desse sangue, a proximidade entre a doença e a saúde bem como simbolizando o paradoxo da qualidade do inconsciente que tanto pode ferir como curar.

Dotado da habilidade curativa de Quirão e do sangue da Górgona, Asclépio tornou-se, segundo a lenda, o maior médico de todos os tempos, curando os doentes que encontrava e até ressuscitando os mortos. Tamanho sucesso despertou a inveja e a ira de Hades, o senhor dos infernos e que reina sobre os mortos, que reclamou a Zeus pelo fato da população de seu reino está sendo reduzida devido à ação curativa e miraculosa de Asclépio. Atendendo ao apelo de Hades, Zeus fulmina Asclépio com um raio, tendo essa morte do grande curador dos mortais causado uma grande comoção entre os mesmos. Movido pelo grande apelo dos humanos, Zeus ressuscita Asclépio e concede sua “apoteose” (divinização), tornando-o imortal. Dessa forma, Asclépio, tendo começado como um médico humano, tornou-se um curador divino, sendo considerado por Luc Ferry “não só o fundador da medicina, mas pura e simplesmente o deus dos médicos”. (5)

Se alguém adoecia na antiga Grécia ou Roma, seu primeiro recurso provavelmente seria procurar a ajuda de um dos “Asclepíades” – médicos cientificamente treinados que detinham habilidade em diagnóstico, alguns tipos de cirurgia e no uso de uma variedade de ervas e remédios. Acreditava-se que tudo o que esses médicos sabiam lhes tinha sido transmitido através de inspiração e ensinamento do grande deus da cura. Caso essa ajuda não surtisse o efeito desejado, a pessoa poderia considerar a possibilidade de fazer uma peregrinação a um dos inúmeros santuários (“Hierón”) de Asclépio, uma jornada sagrada em busca de cura. Poder-se-ia dizer nos termos modernos que ninguém se torna pleno sem empreender uma jornada espiritual em que se move de um estágio psicológico para outro inteiramente novo ou, dito de outra forma, só existe a cura quando ocorre a “metanóia” (transformação de sentimentos).

Chegando a um dos santuários de Asclépio, a pessoa era recebida por um sacerdote cuja atribuição principal era a de averiguar se o indivíduo seria um candidato apropriado para entrar no templo, isto é, se o mesmo teria sido convocado pelo próprio Asclépio através de um sonho. Caso confirmada a convocação divina, a pessoa era submetida a ritos de purificação e abluções (no mundo antigo, pensava-se que o banho tinha efeito purificador da alma assim como do corpo) bem como a uma consulta com o sacerdote, configurando o que denominaríamos hoje de catarse ou confissão – considerava-se que se a pessoa não estivesse bem consigo mesma e sua vida não estivesse em ordem ela não poderia esperar ser curada por esse deus da “nooterapia” (cura pela mente).

Adentrando o templo de Asclépio, a pessoa era direcionada para uma câmara especial (“Ábaton”) onde se encontrava um divã (“kline”) – cujo nome em grego indica a origem do nome moderno “clínica” – sobre o qual a pessoa deitava na expectativa de ter um sonho com esse deus que lhe traria a cura. Esse processo de incubação (“incubare” = “dormir no recinto sagrado”) poderia demandar vários dias, o que se traduziria nos tempos modernos com o entendimento de que para o inconsciente poder falar, o consciente deve ficar em silêncio. A eficácia da incubação alia-se estreitamente com a importância atribuída aos sonhos que prevalecia no mundo antigo: os gregos de então não diziam que “tinham sonhos”, mas que “eram visitados por sonhos” e consideravam os sonhos como algo que acontecia realmente e não como uma experiência imaginária.

Entende-se, assim, a leitura da psicologia analítica de que alguns sonhos podem ser percebidos como um convite do inconsciente para a pessoa adentrar o santuário de sua alma em busca de cura – o sonho tido como a voz da alma e o meio através do qual parte do inconsciente adentra o nosso mundo consciente (segundo Heráclito, “os que estão acordados têm um mundo comum, mas quando dormem cada um se afasta dele indo para seu mundo próprio”, pensamento que corresponde ao conceito de Jung do sentido dos sonhos “no nível subjetivo”).

É interessante acrescentar que, como ilustra Meier, “De inumeráveis sonhos relatados na literatura antiga fica claro que todos estavam conscientes de que os sonhos eram mensagem dos deuses”, ou seja, uma “hierofania” (manifestação do divino). (6) De alguma forma influenciados pela crença órfica anterior de que “o corpo é a prisão da alma”, Pitágoras, Platão, Ésquilo, Eurípides, Píndaro e Xenofonte, por exemplo, tinham como premissa que durante o sono a alma liberta-se de seu túmulo (o corpo), tornando-se sensibilizada para perceber e conversar com seres superiores. Em adição, Aristóteles (a maior autoridade em sonhos da Antiguidade) referia-se à incubação como um método terapêutico; os Estoicos consideravam os sonhos curativos como expressão de previsão divina; Hipócrates (tido como o maior médico grego) percebeu o valor diagnóstico dos sonhos ao considerar que a alma pode identificar as causas de doenças em imagens durante o sono; Galeno (um dos médicos mais proeminentes da Antiguidade) fazia uso de sonhos como um meio de diagnosticar seus pacientes.

Um enfoque muito significativo do mito de Asclépio sustenta que esse deus seria a fonte tanto da cura natural ou científica quanto da cura carismática ou espiritual, desde que o mesmo se preocupava com “corpo” e “alma” (“soma” e “psykhé”). Na visão de Junito Brandão, “Como herói, que foi deificado, Asclépio participa da natureza humana e da natureza divina, simbolizando a unidade indissolúvel que existe entre ambas, assim como o caminho que conduz de uma para outra”. (7) Dessa forma, a natureza do deus dos médicos e da medicina permaneceu ambivalente entre herói e deus.

A Serpente como Renovação da Vida

O símbolo teriomórfico primário para Asclépio era a serpente, réptil que para os antigos tinha o dom da adivinhação. A estreita associação entre a serpente e esse que é também considerado como o deus da medicina é representada no seu grande emblema: o “caduceu”, bastão com uma serpente enrolada em torno do mesmo, o qual tornou-se o signo da profissão médica por representar o poder e a arte da cura. Excluindo-se o mito do Jardim do Éden no qual a serpente é associada com o mal, em quase todas as outras mitologias antigas a serpente transparece um grande poder beneficente, indicando que a troca da pele velha por uma nova simbolizava o seu grande dom de renovação da vida, como se tanto o organismo físico quanto a vitalidade da alma devessem ser constantemente renovados.

O “Curador Ferido”

Conforme exposto, contando com as circunstâncias de seu nascimento, em que foi resgatado da morte prematura por Apolo, e de sua morte, quando ressuscitou por intervenção de Zeus, pode-se dizer que Asclépio tinha maestria nos mistérios da doença, morte, cura e vida por tê-los vivenciado diretamente. Consequentemente, Asclépio seria um exemplo primordial do arquétipo do “Curador Ferido” e da misteriosa relação entre doença e saúde (outros exemplos seriam o do Centauro Quirão, o primeiro mestre de medicina, que foi ferido incuravelmente pelas flechas envenenadas de Hércules, e o de Galeno, que foi curado de doença mortal através de um sonho por intercessão de Asclépio).

Nessa perspectiva arquetípica, o poder de cura emanaria não através daqueles que conheceram somente a saúde, mas através daqueles que adoeceram, que foram trazidos para perto da terra escura da morte e que foram curados. Isso representa que aqueles em que flui o poder de cura serão aqueles que entraram em contato com o mistério do “Curador Ferido”. O sofrimento não ensina o homem a cuidar só de si mesmo, mas a cuidar também dos outros. O “curador” foi desde as origens apresentado em conexão com a dor, mas Platão em especial desenvolve, no seu “República”, o conceito das relações entre “médico” e “sofrimento” de modo muito elevado, qual seja, para tornar-se bom médico e curar os sofrimentos dos outros, um médico deve antes ter padecido ele mesmo aqueles sofrimentos.

Parece assim que há certas pessoas que são destinadas para a doença afim de que através de sua enfermidade e recuperação possam atuar como curadores de outros seres necessitados, ou, dito em outras palavras, parece que aqueles em que o arquétipo do “Curador Ferido” se encontra constelado vivem e trabalham próximo à morte, sendo eles mesmos indivíduos que sentiram de perto o suspiro da morte ou da doença e escaparam por pouco da fatalidade.

A Expansão da Consciência para a Plenitude do Ser

Com fundamentação em ideias acima elaboradas, pode-se postular que para o mundo antigo doença corpórea e disfunção psíquica constituíam uma unidade inseparável, sendo a máxima latina “mens sana in corpore sano” uma formulação tardia (séc. I-II) dessa perspectiva – ressalta-se aqui que a essência do conceito expresso nessa máxima de Décimo Júnio Juvenal já tinha sido anteriormente elaborada por Platão (“Timeu” e “República”), para quem, contudo, ter um corpo são sem mente sã não é possível: a saúde da alma é condição necessária para a saúde do corpo, e vice-versa.

Em suma, a jornada, a purificação, a consulta com o sacerdote e finalmente o processo de incubação que culminava com um poderoso sonho, alteravam o estado de consciência do suplicante por seu contato com uma experiência irracional e energizante – a fonte divina de cura – que promovia a mudança radical e a renovação da vida do seu ego. Assim é que não podemos nos tornar plenos sem nosso envolvimento ativo nessa dinâmica de expansão da consciência, sendo a grande mensagem de Asclépio a de que se a pessoa deseja desenvolver a sua totalidade a mesma deve tornar-se parte dessa grande obra de cura: temos que sofrer nossos próprios processos internos, empreender nossa própria jornada e vivenciar a nossa própria experiência de expansão da consciência no “Ábaton” de nossa alma.

O Curador Integral

Em inglês uma das palavras usadas para designar “doutor” é “physician”, o que nos estimula a conjecturar, considerando o conjunto da argumentação deste texto, sobre a relevância de todo “physician” tornar-se também um “metaphysician” (“metafísico”), referendando-se assim os pensamentos de Hipócrates de que “O médico que é também filósofo é semelhante a deus” e o de Paracelso de que “O médico tem que ter conhecimento da outra metade do homem…”.

REFERÊNCIAS BÁSICAS

(1) HILLMAN, James. Revendo a psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010.

(2) REALE, Giovanni. Corpo, alma e saúde. SP: Paulus, 2002

(3) JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. SP: Martins Fontes, 2013.

(4) SANFORD, John A. Healing and wholeness. NY: Paulist Press, 1977.

(5) FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: Aprender a Viver II. RJ: Objetiva, 2012.

(6) MEIER, C. A. Sonho e ritual de cura: incubação antiga, psicoterapia moderna. SP: Paulus, 1999.

(7) BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 2014

ABSOLON MACEDO – Engenheiro, Especialista e Mestre em Administração, com Extensão em Gestão pela University of Waterloo/Canadá;  Pós-graduações em Psicologia Geral e Analítica das Organizações, em Filosofia Contemporânea e em Sociologia do Trabalho e da Saúde Mental;  Formação em Psicologia do Comportamento Social no CAPT-OKA/EUA, com Treinamento nos Institutos Junguianos de New York, Washington, Texas, Florida e Cleveland/EUA;  Qualificação e Certificação para aplicação do MBTI – Tipos Psicológicos (Steps 1, 2 e 3) e do PMAI (Estrutura Arquetípica) pelo CAPT/EUA, e do EQ-2.0/EQ – 360 (Inteligência Emocional) pelo MHS/EUA; Consultor e Professor de Pós-Graduação de Filosofia do Comportamento Humano e de Liderança e Comportamento Organizacional.