O conto da Aia

Pessoas aprisionadas por um “olho que tudo vê, submetem-se a um estado que tem como slogan a frase “A República de Gilead acima de tudo, Deus acima de todos”. As mulheres descobrem que seus direitos conquistados foram perdidos, enquanto a razão dorme e dá espaço para os instintos primários trazerem consigo monstros, saídos da “sombra”, que fazem os homens ferirem tanto as mulheres quanto eles próprios, transformando a sociedade em um lugar difícil de se viver. É o que mostra o romance O conto da Aia.

Escrito por Margareth Atwood, foi lançado em 1985, durante o governo conservador de Ronald Reagan. Considerada pela autora como uma ficção muito próxima de uma realidade possível, foi lembrada nos tempos atuais do governo Donald Trump e se tornou um best-seller que deu origem a uma série de televisão de grande repercussão.

Jung nos convoca a tomar consciência da “Sombra”, esses aspectos inconscientes que, quando estamos atentos, podemos perceber suas atuações em nossos atos impensados. É quando afastamos o amor e, em seu lugar, colocamos o poder. Por isso, quanto mais conhecemos nosso modo de funcionar, mais possibilidades teremos em cooperar para um mundo melhor.

Esse conto se passa em um tempo futuro. Um grupo fundamentalista chamado “Filhos de Jacó” tinha em sua frente de luta uma mulher chamada Serena Joy. Esta sofre um atentado e faz a patrulha ganhar força e derrubar a democracia americana, instituindo uma nova ordem. Nasce então uma teocracia chamada “República de Gilead”.

Alegando motivos de desordem social, corrupção, instabilidade econômica e, especialmente, o problema da infertilidade decorrente das consequências ambientais de um planeta judiado pela radioatividade e agrotóxicos, dentre outros fatores, conseguiram apoio da elite para manter uma nova regra social baseada no primeiro testamento da bíblia. Oprimem homossexuais, mulheres, dissidentes e cientistas contrários ao que são considerados “verdadeiros bons costumes”.

A sociedade passa a ser dividida em castas. A das “Esposas”, que devem servir aos seus maridos, denominados de “Comandantes”; as “Aias” que eram as mulheres férteis, cujos corpos pertenciam ao Estado; as “Tias” que, como carrascos nazistas, submetiam as Aias a um regime, com requintes de crueldade, para aprenderem apenas a obedecer e a servir.

A tríade “Esposas-Comandantes-Aias” seguiam a passagem bíblica da história de Jacó, quando sua esposa Raquel, desejosa de ter filhos, disse ao marido: “Eis aqui minha serva; entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu, assim, receba filhos por ela.” (Gn. 30, 1-3).

As Aias vestiam-se de vermelho, enquanto as Esposas usavam a cor azul. O vermelho, simbolicamente, relaciona-se com as bases instintivas de nossa psique; é a cor vibrante do sangue e da vida que pulsa. É fácil de ver em manifestações culturais como uma expressão da sexualidade. O azul fica no céu, no topo superior do espectro, nas vestes de imagens sagradas como a da Virgem Maria. Assim, o vermelho e o azul ficam em contraposição um ao outro, tal qual ocorria entre as Esposas e Aias. O sexo por prazer era proibido e deveria ser feito apenas para a procriação. No leito, duas mulheres infelizes assistiam um homem expressar seu gozo.

Para Jung, a psiquização do instinto é realizada pela capacidade do homem em imaginar e fantasiar. Para ele a imagem é o autorretrato do instinto. Então, instinto e imagem são a mesma coisa, ou seja, dois aspectos de uma mesma realidade. Uma mudança na manifestação dos instintos corresponderá a uma modificação equivalente na fantasia ou imaginação. Em uma das passagens, a Aia Offred é alertada para pegar laranjas; no entanto, pensou: “eu não preciso de laranjas, eu preciso gritar, eu preciso pegar a metralhadora mais próxima”. Foi um mero pensamento, um imaginar, pois, em suas ações, o comportamento público foi de pegar as laranjas de forma contida e evitar as consequências trágicas da manifestação de seu instinto em atacar. Este foi contido, tanto quanto sua imaginação.

Offred guardava manteiga para se masturbar e essa era uma forma de poder equilibrar em si o vermelho com o azul. Sua fantasia é o resultado das manifestações que foram geradas pelo instinto. Ela era a transgressão necessária no sentido de causar mudanças para existir vida. Seu ato, embora fosse natural, seria obsceno aos olhos desse regime.

Enquanto o vermelho – o instinto, as Aias – era contido, a outra polaridade – as esposas, a fantasia – também era. Aias e Esposas tinham uma relação sem vitalidade, pois separavam o vermelho do azul, ou o instinto de preservação da espécie do imaginário, que dá vida e sentido ao ato. É semelhante a uma carga energética que acumula e não pode explodir.

No mundo das Aias, só existiam imagens, evitavam palavras escritas e a finalidade do Estado era que desaprendessem a ler. A cultura sempre foi inimiga da servidão. No entanto, sabemos que as imagens, como símbolos, fazem-nos olhar e têm poderes energéticos, capazes de modificar nossa atitude. Isso é diferente das imagens, que, no mundo das Aias, eram apenas sinais indicativos para elas se orientarem ao fazer compras.

Sabemos que o tempo naturaliza as questões mais absurdas e que aos poucos tudo pode ser assimilado pela sociedade. A mulher June, separada do marido e do filho pelo extremismo do regime, foi transformada numa Aia que pertence ao Fred, daí seu nome Offred. Em suas palavras, ela diz: “Agora, eu estou acordada para o mundo. Eu estava dormindo, antes. Foi, assim, que deixamos acontecer. Quando aniquilaram o Congresso, não acordamos”.

A repressão às nossas ideias e imaginações é um ato obsceno que acontece em regimes totalitários, cuja consequência é o “vermelho” aparecer como estupros, roubalheiras e prostituição.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br