O Caminho de Santiago e a realização do Si-mesmo

Nesse artigo gostaria de dar continuidade à exploração de alguns conceitos fundamentais da psicologia junguiana utilizando como pano de fundo a peregrinação a Santiago de Compostela. Essa análise foi iniciada no artigo “A busca de sentido através da jornada do herói no século XXI”.

A presença intensa de símbolos ao longo do Caminho reflete as transformações da consciência através da re-significação desses símbolos. Segundo Joseph Campbell (1998, p. 47), “para uma cultura ainda nutrida na mitologia, a paisagem, assim como cada fase da existência humana, ganham vida através da sugestão simbólica.”

Nancy Frey (1998, p. 45) destaca o poder da jornada a Santiago de revelar feridas, perdas, fracassos, medo, vergonha, vícios deixados infectados pela vida cotidiana; experiências ao longo do Caminho geralmente atuam como catalisadores que permitem a elas serem expostas. Tem sido, e parece continuar a ser, uma trilha de esperanças e milagres de completude de uma ordem diferente. Alguns peregrinos descrevem o Caminho como a rota da terapia. Nesse ponto vale citar Jung (2004, p. IX): “o autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje.”

O poder do mito pode permanecer insuspeito ou, por outro lado, alguma palavra casual, o odor de uma paisagem, o sabor de uma xícara de chá ou algo que vemos de relance pode tocar uma mola mágica, e eis que perigosos mensageiros começam a aparecer na mente. Perguntas como: por que você trocou o conforto do lar por essa cabana fria? Ou ainda: todo esse esforço, essas bolhas, calos, serão recompensados? Esses mensageiros são perigosos porque ameaçam as bases seguras sobre as quais construímos nosso próprio ser ou família. Mas eles são, da mesma forma, diabolicamente fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem portas para todo o domínio da aventura, a um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu.

Quem progredir no caminho da realização do Self trará inevitavelmente à consciência conteúdos do inconsciente pessoal, ampliando o âmbito de sua personalidade. Poderia acrescentar que essa ampliação se refere, em primeiro lugar, à consciência moral, ao autoconhecimento, pois os conteúdos do inconsciente liberados e conscientizados pela análise são em geral desagradáveis e por isso mesmo foram reprimidos. Figuram entre eles desejos, lembranças, tendências, planos. Tais conteúdos equivalem aos que são trazidos à luz pela confissão de um modo mais limitado. O restante, em regra geral, aparece mediante a análise dos sonhos. É muito interessante observar como às vezes os sonhos fazem emergir os pontos essenciais, um a um, em perfeita ordem. Todo esse material acrescentado à consciência determina uma considerável ampliação do horizonte, um aprofundamento do autoconhecimento e, principalmente, humaniza o indivíduo, tornando-o modesto. Entretanto, o autoconhecimento, considerado pelos sábios como o melhor e o mais eficaz para o homem, produz diferentes efeitos sobre os diversos caracteres. (JUNG, 2003, p. 24)

Jung (1990, pg. 51) indica que “o Self não é apenas o ponto central, mas também a circunferência que engloba tanto a consciência como o inconsciente. Ele é o centro dessa totalidade, do mesmo modo que o eu é o centro da consciência.”

No livro O Eu e o Inconsciente, Jung apresenta um exemplo acerca da ideia arcaica de Deus que demonstra que o inconsciente parece conter outras coisas além das aquisições e elementos pessoais. Ele se depara com evidências do surgimento inconsciente em uma pessoa civilizada de uma imagem divina autêntica e primitiva, produzindo um efeito vivo, que poderia despertar uma grande discussão com um psicólogo da religião. Nessa imagem nada há que possa ser considerado pessoal; trata-se de uma imagem totalmente coletiva, cuja existência étnica há muito é conhecida. Trata-se de uma imagem histórica que se propagou universalmente e irrompe de novo na existência através de uma função psíquica natural. É o caso de um arquétipo reativado, nome com o qual Jung designou as imagens primordiais reveladas no seu estudo sobre os sonhos. Mediante a forma primitiva e analógica do pensamento peculiar aos sonhos, essas imagens arcaicas são restituídas à vida. Não se trata de ideias inatas, mas de caminhos virtuais herdados (JUNG, 2003, p. 26).

Nessa linha, Jung propõe a hipótese de que o inconsciente, em seus níveis mais profundos, possui conteúdos coletivos em estado relativamente ativo, designado como inconsciente coletivo. Trata-se de um exercício sobre a visão de que a psique consciente e pessoal repousa sobre a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal, cuja natureza é inconsciente; a relação da psique pessoal com a psique coletiva corresponde, em grandes linhas, à relação do indivíduo com a sociedade. Na psique coletiva abrigam-se todas as virtudes específicas e todos os vícios da humanidade e todas as outras coisas.

Concluindo, uma vez estabelecidas as bases do inconsciente coletivo, Bani Shorter (1996, p. 22-23) indica que um registro de participação ritual altera profundamente o ser e estimula a renascimento da consciência. Eu concordo com esse raciocínio, pois retomando o argumento inicial de que a presença intensa de símbolos ao longo do Caminho reflete as transformações da consciência, é razoável supor que a exposição intensa a estímulos, símbolos e emoções diversas estabelece condições ideais para que ocorram diálogos entre a consciência e o inconsciente, entre imagens pessoais e arcaicas, dentro do círculo englobado pelo Self. Em muitos casos podemos dizer que a vivência pessoal do peregrino ao longo da jornada acena para o transcendente, fundamental para a compreensão de si mesmo.

Referências:

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1998.

FREY, N. Pilgrim Stories – On and Off the Road to Santiago. Univ. da California, 1998. p. 45.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 1990.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2003.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Vozes, 2004.

SHORTER, Bani. Susceptible to the Sacred – The Psychological Experience of Ritual. Routledge.

Waldinei C.S.Guimarães, pós-graduado em Psicologia Junguiana pelo IJEP e Analista em Formação do IJEP; Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP; graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Mackenzie.