Hermann Hesse: com a maturidade fica-se mais jovem

O que poderá dar sentido ao envelhecer? Uma parte da psique faz-nos ater aos médicos e às máquinas, que fazem diagnósticos para determinar as possibilidades biológicas do ainda viver; a outra, faz-nos olhar para as estrelas e projetar nelas nossa essência transcendente. É a ideia de totalidade, objeto de revelações místicas. Que parte será útil para nos conduzir à maturidade?

Desde os 43 anos, o Nobel de literatura Hermann Hesse produziu textos sobre o crepúsculo da vida. Seus escritos foram reunidos em uma obra lançada no Brasil, intitulada “Com a maturidade fica-se mais jovem”. Ele faleceu aos 85 anos, enquanto dormia e seu último trabalho foi um poema dedicado a uma velha árvore, que não sabia se chegaria a ver a próxima estação. A escolha de Hesse foi a de contemplar as estrelas, o que fez das suas observações sobre o envelhecer uma poesia.

À época da Primeira Guerra, Hesse fez um processo psicoterapêutico com J. B. Lang, que aplicava o método junguiano. Tempos depois, tornou-se cliente do próprio C. G. Jung. Daí, utilizar-se em sua obra, dos conceitos dessa psicologia. Ele definiu para o escritor chileno Miguel Serrano que “Morrer talvez seja ir para o Inconsciente Coletivo, perder-se, para dali retornar um dia à forma, às formas…”.    Inconsciente são atividades mentais, que estão conduzindo nossos atos, sem que tenhamos consciência dessas ações. No entanto, para a psicologia de C. G. Jung, há uma camada de inconsciência mais profunda, que é uma condição inata, em que todo ser humano se predispõe a realizar tudo o que é próprio da espécie. Ele denominou esse conceito de Inconsciente Coletivo.

É no Inconsciente Coletivo que encontramos a sabedoria dos nossos antepassados e a dos antepassados do mundo; talvez, do universo. Em todas as gerações, os temas se repetem coloridos, de acordo com as experiências do espírito do tempo. A essas unidades temáticas que compõem o Inconsciente Coletivo, Jung chamou de Arquétipos. Desses, ele destacou o Self, o arquétipo da totalidade, que faz o homem ter necessidade de criar uma imagem que possa compor a ideia de Deus.

Self é como um centro divino, um círculo imaginário, que transcende o que é circunscrito. É o ilimitado que se relaciona com o limitado, uma analogia com o Deus que se relaciona com o homem. É como uma voz interior, que nos indica o que deve ser vivido. Amadurecer é saber dialogar com esse Self e segui-lo em suas mensagens – que, só quem puder ler o silêncio e entregar-se aos enigmas das figuras da imaginação, poderá entender seus desígnios.

O Self, ao se fazer carne, ter um corpo, cria a consciência de um “Eu” para que ele possa atuar. Esse “Eu” é o limitado, que pode se relacionar com as experiências desse corpo, guardadas em uma estrutura imaginária, que Jung chamou de Inconsciente Pessoal.

Enclausurado nesse corpo, que segue as leis da biologia, o “Eu” se relaciona com o Self por meio de rituais e imagens, que chamamos de Símbolos, aquilo que une o desconhecido ao conhecido, o ilimitado ao limitado. Então, uma parte da psique é literal (o “Eu”, o circunscrito) e a outra (a relação desse “Eu” com o Self), manifesta-se de forma simbólica.

É dessa maneira simbólica que Hesse pode dizer “Amanhã ou depois, em breve, serei folha, terra e raiz, não mais escreverei palavras em folhas de papel, não terei mais no bolso a conta do dentista…” é como se dissesse que o “Eu” irá se dissolver no Self, como uma gota d’água no oceano. Ele deixará de existir, apenas em sua individualidade, mas continuará o Self na condução de outros humanos.

O “Eu” se manifesta, dividindo o mundo em bem e mal, claro e escuro, bom e ruim, enquanto o Self só tem a unidade do seu centro. O amadurecer saudável é também romper com esse modo unilateral de enxergar o mundo. Brincar de casinhas e falar com pedras, como fez Jung, é a coragem de deixar virem as fantasias para seguir e criar com a segurança de um “Eu” forte que, em lugar de ser invadido pelo inconsciente e se dissolver na loucura, permite ao indivíduo uma saudável adaptação ao mundo.

Uma semente desempenha seu papel, de chegar ao cumprimento das leis biológicas – e, talvez, deixar outras sementes para continuarem a sua criação -, quando não pisoteada por um animal. Assim, o Self carnal e cósmico, tem a potencialidade de construir nossa personalidade, o que nos leva a ser íntegros. Enquanto o “Eu” quer entender se o universo se fez por necessidade ou por acaso – ou o que há depois da morte -, o Self já tem em si todos os segredos do universo e não precisa dessas respostas.

As silhuetas das pessoas que existiram continuam vivas para nós, congeladas naquela imagem que vimos pela última vez, muitas vezes, aparecendo em nossos sonhos sem rosto ou em nossas lembranças como quem foge de ser retratada. Sua voz ficou longe, suas maneiras não se mostram e tudo ficará envolvido em saudades. Porém, como diz Hesse, por meio do pensamento, da exata lembrança e da reconstrução do ente querido em nosso íntimo, poderemos fazer o morto permanecer ao nosso lado e sua imagem, preservada, nos ajudará a sublimar a dor.

Olhar a vida, apenas com o “Eu”, é assombrar-se com a decadência biológica no cumprimento de uma sina, enquanto a visão do “Eu”, na relação com o Self, ou o modo simbólico de perceber a vida, é ser contemplativo e, como aquela folha que amareleceu, balouça suavemente, até flutuar aos cuidados de uma corrente de vento, que delicadamente lhe pousa ao chão.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br