“Fluxo” e criatividade – despertando o prazer e o sentido da vida.

O poeta Rainer Marie Rilke já dizia “Deixe as coisas acontecerem para você, a beleza e o
terror, apenas vá em frente. Nenhum sentimento é para sempre”. A emoção afirma um movimento da alma. Deixar acontecer implica em permitir que o presente se apresente, abrindo a nossa percepção e a consciência para que as impressões, as sensações e os sentimentos venham, gradualmente, à superfície ou imponham-se o mais emocionalmente quanto possível, é claro. Viver surfando nas ondas do tempo. Se pararmos para pensar, caímos. Como podemos ser unos com essas ondas, estarmos em imersão plena, fluindo?

O estado de fluxo, ou flow, é um expressão usada por Mihaly Csikszentmihalyi (1990) para definir um estado mental em que as pessoas estão tão envolvidas em uma atividade que nada mais parece importar; a experiência é tão agradável que as pessoas continuarão a fazê-lo, mesmo a um custo excelente, por causa de fazê-lo. No flow não há um esforço aparente. Temos a impressão que o real é um sonho. Executamos a atividade sem interferência do pensamento. Como se todo o resto não existisse e você não precisasse de mais nada, simplesmente daquela atividade. Tal envolvimento é considerado ao mesmo tempo espontâneo, parte do interesse individual, isto é, a atividade é um fim em si mesma.

O tempo pára. Surge uma espécie de contentamento, experiência onde a mente pára de transitar pelo passado ou pelo futuro, abraçando o momento presente com paixão. A vida é rica e plena, estamos satisfeitos só por existir. A experiência de fluxo está associada à consciência de Afrodite (deusa grega do amor), tipo especial de compreensão, associada à emoção e arrebatamento, semelhante ao processo de apaixonar-se. Aquilo que contemplamos à esta luz se torna “dourado”, que era o termo utilizado pelos gregos em referência à beleza.

James Hillman (1997) nos diz que cada um de nós tem uma singularidade que pede par ser vivida e que já está presente antes de poder ser vivida. É como se a vida fosse conduzida por um centro invisível, chamado de daimon (gênio interno). Representa uma imagem do coração dentro de cada um de nós. É o que revelamos quando nos  apaixonamos perdidamente, pois então estamos abertos para exibir nosso verdadeiro ser.

O daimon motiva. Protege. Inventa e persiste com obstinada fidelidade. Não costuma ceder ao bom senso e muitas vezes faz seu portador agir de forma que foge às regras, especialmente quando negligenciado ou contrariado. Tem muito a ver com sentimentos de singularidade, grandeza e com a inquietação do coração, sua impaciência, sua insatisfação, seu desejo. Deseja ser visto, testemunhado, reconhecido, particularmente pela pessoa que dele cuida.

As experiências daimônicas são de fluxo e para percebê-las podemos nos perguntar: o que nos deixa entusiasmado (a)? A palavra grega enthousiasmos significa “inspirado pelos deuses”. Quais as atividades que você faz, adora e perde a noção de tempo? O encontro do amante com o ser amado é de coração para coração, como o que acontece entre escultor e modelo, entre a mão e a pedra. É um encontro de imagens, uma troca de imaginações. Já dizia Santo Agostinho, que o nosso propósito nesta vida seria recuperar a saúde do olho do coração através do qual se poderia ver Deus.

Reconhecer a carga invisível que carregamos e elaborar uma fantasia sobre ela que corresponda à imagem do coração, portanto, seria tarefa de pais, educadores, psicoterapeutas, profissionais. Esse reconhecimento implica em despertar o prazer e o sentido da vida.

Mihaly afirma que sem disciplina não se chega ao Flow. Três condições mínimas devem estar presentes se você quiser entrar em Flow: Metas, equilíbrio e feedback. As metas
precisam ser desafiadoras e realizáveis. Tenha foco e certeza que está trabalhando para um objetivo maior: a busca do significado.

Há de haver um equilíbrio entre habilidades e desafios. Se uma delas pesar mais fortemente do que a outra, o fluxo provavelmente não ocorrerá. O desafio ótimo está relacionado ao significado e a habilidade está relacionada ao envolvimento (eros) na realização dos desafios. Para que o fluxo ocorra torna-se necessário um feedback positivo nas situações de desafio de nível ótimo, ou seja, precisamos ter uma percepção de autonomia (sentir que somos hábeis para realizar o desafio). O desafio não deve sufocar o senso de liberdade individual. Quando a harmonia ocorre nos sentimos
responsáveis pelo desempenho competente, sensação de descobrimento, o que nos transporta para uma nova realidade.

Trazer atividades de fluxo para a nosso cotidiano implica em tornar a nossa vida mais criativa, envolvente e atraente, intrinsecamente gratificante. Passamos a confiar no momento e fluímos com ele, sem as amarramos do perfeccionismo ou qualquer tipo de resistência. Surge o arrebatamento.

O arrebatamento constela o arquétipo da dança da criação em nós. Quando dançamos, movemo-nos no espaço segundo um ritmo que marca o tempo, juntando-se os dois em harmonia com a música-sentimento. A dança simboliza a arte da criação. É Sofia, a divina beleza, a dança gentil da vida, arte de nos movermos no cotidiano de maneira natural e integrada e, no entanto, espontânea.

Carregamos a vasilha que nós próprios somos, enquanto pessoas e enquanto um todo, uma vasilha nas mãos de Deus, uma vasilha que simboliza a nossa quota individual na grande corrente da vida. Alinharmos a corrente da vida com o ritmo interno das nossas emoções é o grande desafio. Para isso precisamos desenvolver o ritmo, a concentração, o equilíbrio e a harmonia.

Ermelinda Ganem Fernandes

Médica, psicoterapeuta junguiana, mestre e doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela UFSC (Universade Federal de Santa Catarina) e coordenadora do curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) do IJBA/Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the psychology of optimal experience. USA: Harper
Perennial Modern Classics edition, 1990.
HILLMAN, J. O código do ser – uma busca do caráter e da vocação pessoal. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1997.