Envelhecer e morrer (Experiências necessárias)

Tomando como ponto de partida este excerto do romance “O Momento Mágico”, que aborda a questão da morte no hospital, portanto, distante do ambiente familiar, do aconchego dos entes queridos, podemos inferir o absurdo nível de angústia gerado por uma situação como essa.  Além de questões idiossincrásicas – uma vez que a morte advém a cada um de nós em momentos distintos de nosso desenvolvimento pessoal e de maturação de tal questão – há a sobrecarga imposta por nossa (social) visão imatura e prepotente do fenômeno.  Portanto, há o componente interno ou pessoal, e o componente externo ou não pessoal, relativo ao ambiente ou cultura, como motores dessa angústia.  Claro, ambos estão ligados, são interdependentes, mas, absolutamente, não são congruentes.

    

O Ego médico, ampliado no sentido de abarcar toda a equipe de saúde, é cunhado com a determinação de ver na morte o sinal inequívoco de derrota de nossos dispositivos artificiais de manutenção da vida.  Antes da morte, a própria velhice, embora inexorável, já é vista, em uma cultura onde predominam valores da juventude, como decadência e inadequação.  O mundo, todo projetado para os arroubos, movimento e ritmo dos jovens, passa a ser um local não adaptado aos velhos, com sua característica cadência.  Isso tão somente contribui para a sensação de inadequação e alienação dos idosos, que se acham extemporâneos, anacrônicos, com o avançar da idade e a perda progressiva de seus referenciais de mundo e época.  As mudanças em seu entorno, a perda dos amigos, parentes e amores mais significativos, a perda de hábitos e condicionamentos que delineavam uma forma particular de existir, forçam o idoso a uma readaptação difícil e quase nunca executada a contento.  Mais e mais ele vai percebendo a desconfiguração de seu habitat, de suas referências existenciais, o que em muito contribui para a sensação de vazio, de alheamento, dos últimos anos.  O idoso forçosamente e com sofrimento vai descolando-se da vida, desmotivando-se, mais ou menos ciente de que esse é um processo inevitável e que ele não pode controlar.  Muitas vezes há patéticas tentativas de se permanecer jovem, “ligado”, “por dentro”, “in”, como diriam os jovens em suas gírias. Numa visão comum e tingida de preconceitos, envelhecer é falência, decrepitude, prenúncio de morte.  No mais das vezes a velhice está associada a dores, limitação e doenças. Hoje sabemos que não necessariamente é assim, há alternativas, mas fatalmente resvalamos para o ideário popular que ainda pinta o envelhecer com tons sombrios.  

     

O idoso, portanto, sente-se em situação de desvantagem, de desmerecimento, de desconstrução, o que, por si só, dificulta a caminhada.  Torna-se irresoluto, tímido, vacilante, pois, ciente de sua fraqueza.  E já que ossos e músculos não lhe correspondem às expectativas, deve restar-lhe a lucidez, a maturidade, o equilíbrio, o intelecto.  Aos homens e mulheres mais maduros cabem grandes obras de peso intelectual.  Há que se viver uma longa vida para atingir os “mistérios”.   Refiro-me à sabedoria da existência disponível aos que percorreram longos caminhos.  Refiro-me ao resgate do simbolismo do arquétipo do velho sábio, centrado, conselheiro, que tem as respostas para a ânsia da juventude, conhecedor do “elixir da longa vida”, se não da vida física e destrutível, daquela outra verdadeira e imortal.  Devemos cooperar para atrair para o nosso pool de crenças e experiências culturais, a vivência do velho sábio, à moda de muitas culturas arcaicas, mais intuitivas e espiritualizadas.   

     

Sem abominar o mundo à nossa volta ou as inequívocas conquistas materiais, sem a necessidade de meditar por anos em uma caverna no Himalaia, podemos “despertar” para a multifacetada realidade interior, com muitos personagens ávidos de vivificação e experiências por realizar.  Um mundo vastíssimo, tão real quanto o universo ponderável à nossa volta, e muito mais acessível aos idosos, ou a qualquer um que se disponha a essa comunicação com o Self (Alma).  Para essa aventurosa descida ao mundo interior não são necessários ossos e músculos em plena forma, é factível a qualquer um, incluindo velhos e enfermos.  Cada qual pode realizar essa jornada a seu modo e a seu tempo, numa tentativa de reencontro consigo mesmo, de revitalização das verdades essenciais da vida, em contraste com as ilusões criadas pelo Ego ao longo da estrada.  Envelhecer e morrer, experiências inevitáveis, não passam de curso preparatório e adestramento para nova percepção de existir, nova forma de viver, dentro de conceito simbólico, muito mais amplo e satisfatório do que a mera concepção biológica de vida.  Não importam as nossas diferentes ideologias, filosofias ou religião, todos podemos atingir conceitos mais amplos do significado da vida e de sua contrapartida, a morte. 

      

É possível, pois, se não criar, recriar uma imagem menos distorcida e mais favorável do envelhecer, ligando-a a ricas e respeitáveis vivências, retirando de sobre ela o fardo das associações pejorativas. É possível também desvincular o envelhecer da ideia de decadência, agregando o conceito de transformação, transmutação, adaptação a uma noção de vida muito mais vasta, ainda que subjetiva e simbólica.  Ao ter reverência pelo passado, o idoso segue em direção ao futuro, mais confiante e seguro de si, compreende que passa por experiência que transcende sua realidade particular.  Ao mesmo tempo, segue desvelando sua singularidade.

      

Sem a visão míope que envolve a morte, denominador final comum do envelhecer, esta não deverá ser corolário de dores e sofrimento, mas de júbilo pela sensação de missão cumprida e satisfação pela obra realizada, ainda que sempre parcial.  A morte configura-se, portanto, como uma etapa a mais na escalada da vida, não como seu contraponto, nem como seu inexorável término.  Envelhecer, morrer, como em toda e qualquer espécie animal ou vegetal, até mesmo como em qualquer material físico-quimicamente constituído, são etapas vitais. 

     

O homem que chora a morte de um ente querido, por admiti-lo perdido em definitivo, traz-me à mente a imagem da criança pequena que se desespera ao ver a mãe sair para o trabalho. 

     

Fazendo referência a James Hillman, idealizador da Psicologia Arquetípica, infiro que o arquétipo do jovem e do velho (Puer e Senex) sejam exatamente o mesmo, em diferentes polaridades, assim como, em essência, somos sempre a mesma pessoa, quer estejamos situados em um pólo ou outro da vida, ou seja, quer estejamos em uma extremidade ou outra do arquétipo, buscando aqui apenas o entendimento com uma metáfora espacial. 

     

A jornada em direção ao futuro desconhecido deve ser tranqüila e despojada, quando entendida não como perda de juventude e vigor, mas como ganho de experiência, vivência e despertar de sensibilidades.  O caminho é menos íngreme quando assumimos o envelhecer (e morrer) como uma experiência transpessoal, absolutamente necessária e lógica, algo, como não poderia deixar de ser, plenamente inserido na engenhosidade e propósitos da Natureza, ainda que nem sempre inteligíveis sob os limites de nossa tridimensionalidade. 

     

O envelhecer, muito além de simples contar de dias em direção à morte, vivência de Chronos (tempo cronológico, quantitativo), pode e deve tornar-se uma vivência Kairós (tempo qualitativo, tempo oportuno).  Sem referência à mitologia, quero dizer que a vida pode ter uma relação difícil com o tempo (Chronos), em que nos posicionamos fora do momento presente, do aqui-e-agora, estamos em conflito com ele; ou podemos fluir com o tempo, ser o próprio tempo, fundir-nos nele, o que torna a contagem dos dias absolutamente desnecessária e a ação dele sobre nós algo perfeitamente aceitável, portanto, totalmente integrada à nossa natureza. 

     

Marcio Ribeiro Leite, baiano, casado, pai de dois filhos.

Médico, psicoterapeuta e escritor, apaixonado por Literatura.

Vencedor do Prêmio SESC de Literatura em 2008

Vencedor do Prêmio Internacional de Literatura da UBE-RJ

Vários contos premiados em concursos nacionais.