Deus, a religião e o sagrado: Uma Visão Junguiana

Jung, desde muito cedo interessou-se por estudar sobre Deus e as mais diversas religiões, a fim de compreender como a imagem que o homem tinha de Deus e cultivava dentro de si, norteava sua vida e seus valores.

Filho de mãe culta e pai pastor protestante, autoritário, que acreditava em um Deus que não admitia discutir e nem questionar os seus ensinamentos. Avô médico, culto, transitava pelos meios culturais e exercia forte pressão sobre seu filho (pai de Jung). Os pais não dispunham de tempo para Jung, de modo que ele ficava sozinho, consigo mesmo, tendo o avô como alguém que gostava da companhia e a biblioteca do pai que lhe era prazerosa. Jung, desde muito jovem, não aceitava a posição do pai quanto a Deus e a religião e o via como uma pessoa infeliz, pois como poderia haver felicidade em alguém depressivo e que acreditava em um Deus que não aceitava questionamento e nem diálogo, então, Jung foi em busca não de um Deus externo, mas de um Deus interno (presente dentro de si e de cada um), estudando sobre as diversas religiões e entendendo-as como a necessidade do homem ter dentro de si um Deus que o protegesse e para com o qual tivesse respeito.

Mal compreendido em suas obras ao falar em religião, pois ao se referir a busca de Deus e a necessidade do Sagrado na vida do homem, muitos da academia deturparam as palavras de Jung, alegando que ele era religioso, místico, herético, charlatão, dentre outros tantos adjetivos.

Ao falar sobre religião, Jung está nos falando do Numinoso (do latim “numen”, divindade), do sagrado, do divino. Para ele a religião é a expressão mais antiga da alma (psique) humana e para se conhecer Deus é preciso conhecer a Si Mesmo. Não estava preocupado com o Deus externo (instituições, igrejas, dogmas), mas com o Deus Interno (Imago Dei ou Imagem de Deus que cada um tem dentro de si), tratando-se, pois, do contato e da experiência íntima com o Numinoso, o Sagrado, o Self.

Não buscou conceber Deus como o faz a teologia, mas, do ponto de vista psicológico, entendê-lo como sempre existente e presente no inconsciente coletivo e como Imago Dei correspondente ao que cada um experimenta como Deus. A Imagem de Deus é de crucial importância na vida de cada um, pois nos vemos a partir da crença que temos em Deus, e assim também vemos o mundo, logo, ao perguntarmos a uma pessoa qual a religião dela, ela nos revela a sua Imago Dei.

Jung dizia: “Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego ordinário do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados. (JUNG, 2012).

Na formação ética e cultural de um povo, a ligação com o sagrado é determinante, pois, a partir do momento em que se tem uma crença, ela se encarrega de fazer o indivíduo aceitar ou não as coisas, por exemplo, os índios somente foram dizimados porque não se permitiram escravizar (GAMBINI, 2000).

Duas questões eram de fundamental importância para Jung: o mal e porque o homem sofre.

Os símbolos nos dizem muito sobre estas questões e não precisamos ir muito longe: a representação do Cristianismo é a cruz, sido colocada no mundo por Lúcifer (aquele que traz a luz) e, por meio do contraponto de Cristo e Lúcifer (bem e mal) foi que se deu a revelação. Portanto, tendo tido a participação de Lúcifer, na Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) era necessário se inserir o quarto elemento (elemento refratário) – a Sombra (Satanás, Lúcifer), sendo necessário haver enfrentamento de Sombra para se dar o processo de individuação. (JUNG, 2013).

Nas religiões ocidentais o mal está no outro, está no demônio, na legião, então ele está fora e não faz parte de quem o vê. As religiões ocidentais não lidam com o aspecto dual de Deus (amor e temor) e isto faz com que a Sombra se torne muito grande. Para uma relação saudável com Deus, se ama e se teme a ele. Não pode só se amar ou se temer, os dois elementos são complementares e fazem parte do processo de individuação, uma vez que somos compostos nem só de luz e nem só de sombra, mas de luz e sombra (MAGALDI, 2017).

Analisando o que aconteceu com Jó, no livro Resposta à Jó, fica-nos ainda mais clara a importância de se lidar com a Sombra no processo de individuação: Jó, um Ego tomado por conteúdos do Inconsciente Pessoal, culto, bem-sucedido e sem sentido de vida, bom homem, fiel e temente a Javé, todavia, desconhecedor de que Javé era totalidade, Self e, portanto, não conhecia a dimensão da Sombra, ficando assim exposto a ela. Javé, era representação do Self, Imago Dei e estava dentro de Jó. Satanás, o lado sombrio de Deus (Javé), aparece para trazer a Sombra que estava desintegrada de Jó e este, ao sofrer as provações advindas de Javé, se pergunta por que com ele, como pode um homem sofrer sem saber qual o seu pecado? Mas este era o problema, pois o pecado de Jó era não ouvir o Chamado de sua vida. Perdera o alvo, traíra sua alma, e com esta pergunta colocara em dúvida o que estava fazendo até aquele momento. Depois de muito sofrimento, Jó aceita sua cruz, se arrepende e recebe tudo em dobro de bom. Jó fez com que todas as suas oferendas fossem dadas ao céu, se tivesse dado à Satanás (equivalente a sua Sombra) a sua parte, esse não triunfaria sobre ele, mas não o fez. (Magaldi, 2015). Por isso a importância de conhecermos e alimentarmos adequadamente nossa Sombra, caso contrário, ela se fortalecerá e nos destruirá. (JUNG, 2012).

Jung, a partir desta história, pensa a representação de Cristo em Jó. É o conflito do Self para se fazer a reintegração no Novo Testamento, reconhecendo a Sombra também: amor e temor a Deus. Jung via seu pai em Javé, mostrando o lado ruim de ambos e dizia que isto acontecia com quem não ouve o seu Chamado. O livro de Jó faz olharmos para o nosso Chamado, nosso sentido maior na vida.

Pecado na psicologia analítica é agir contra o Self. Somos homo religious e a nossa angústia é o rompimento com re-ligare, pois nada é mais importante do que estar com Deus, com sua Imago Dei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GAMBINI, Roberto. Espelho Índio. A Formação da Alma Brasileira. 1 ed. São Paulo. Axis Mundi, 2000.

JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

O Eu e o Inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

A Natureza da Psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Psicologia e Religião. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

Psicologia do Inconsciente. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

Tipos Psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Resposta a Jó. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

MAGALDI FILHO, Waldemar, 2015. Nota de Aula sobre “Resposta a Jó”, no curso de Psicologia Junguiana, na FACIS – Faculdade de Ciências da Saúde, 2015.

MAGALDI, Ercília Simone Dalvio, 2017. Nota de Aula sobre “Medicina Teossomática”, no curso de Psicossomática, na FACIS – Faculdade de Ciências da Saúde, 2017.

Andreia Araujo – Psicóloga Clínica, Analista Junguiana em Formação, Especialista em Psicologia Junguiana e Psicossomática pelo IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa.
Contatos: 11 99730-8737 / deh.faraujo@gmail.com.