Capitães da Areia

Jorge Amado escreveu uma história sobre uma tribo formada por meninos abandonados – Os Capitães da Areia. Sobreviviam por meio de furtos e, por isso, incomodavam uma sociedade identificada por uma ordem regida pelas autoridades e o temor a Deus, que deixava em seu rastro atos perversos para toda ameaça que sentiam. A religião praticada fazia com que o temor ao divino se revertesse a um temor em amar. Da mesma forma que nos faziam compreender o quanto pessoas piedosas e inconscientes do seu outro lado desenvolvem estados de espírito infernais nos levando a crer que o homem é muito menos bom do que ele se imagina ou gostaria de ser, como descreveu Jung em sua obra.

Os interesses econômicos, na mídia, representados por um jornal local, um veículo injusto que nos faz questionar qual a diferença entre as fontes do mal e as da moralidade.

O padre José Pedro e a mãe de santo Aninha são os únicos adultos respeitados pelos Capitães da Areia. O candomblé, os santos, os impulsos de sobrevivência iam criando o caminho para a evolução de uma organização dentro de uma cidade atacada em nome da bondade e do divino.

João Grande era um negro considerado tacanho entre os seus, tal qual o padre José Pedro para os seus colegas do clero. Ambos eram dotados de bondade e guiados por sentimentos nobres. João Grande, fiel às suas raízes, tem na mãe Aninha a representante de sua religiosidade. Pirulito, membro antes perverso, é ensinado pelo padre a amar e temer a Deus. Enquanto a bondade de João Grande é genuína, a de Pirulito vem com a conversão, e faz dele um futuro sacerdote.

A ética pelo temor a Deus aparece em conflito algumas vezes. Numa delas, Pirulito entra numa casa que vende imagens de santos e vê que uma das Virgens tem um bebê solto em suas mãos como a suplicar para que alguém tome conta do seu filho. Pensa em furtá-lo. Mas os Capitães da Areia só furtam para alimentar  o grupo, e furtar a imagem não atenderia tal finalidade. O certo e o errado se confundem para Pirulito. Dominado pelo poder do símbolo representado pela Virgem, e aproveitando a ausência da vendedora, furta a estatueta dominado pela vontade de proteger e nutrir a criança abandonada que fora um dia.  É o fenômeno psíquico que nos proporciona refazer nosso sofrimento no mundo mágico da imaginação e dos sonhos. De forma semelhante o padre José Pedro também se confunde em sua ética. Ele desviara parte da doação recebida para comprar velas e a usou para levar crianças a um carrossel. Era sua identificação com o ser criança privada da infância vencendo a ética. Uma conduta errada melhor do que a aparentemente correta.

O grupo tinha um líder, Pedro Bala, um órfão que nunca conhecera a mãe. Menino de 15 anos, parecia adulto ao tomar decisões. Ele era o aspecto consciente do grupo. Faz par com Dora, a também heroína, que ao chegar em um grupo de meninos foi capaz de impor o respeito e transformar a sexualidade, mesmo naquela idade, em algo integrado ao amor. Torna-se o receptáculo das projeções de mãe e irmã. Sentindo a incompletude que caracteriza o amor, ela vive a sexualidade de mulher, quase ao morrer, como quem pede ao seu amante e herói para lhe completar ainda em vida.

Cada membro dos Capitães da Areia compensava a dor primal à sua maneira. Gato tem uma amante adulta. Aprende a arte do vigarista e ataca suas vítimas com facilidade. João José, o Professor, passava seus conhecimentos para o grupo. Por meio de suas expressões artísticas das desigualdades sociais, consegue fama e demonstra ter uma boa resiliência. Boa-Vida tinha amigos e não passava fome. Com varíola, poupou seus companheiros e revelou seu senso de ética quando se retirou para o temido “Lazareto”. Consegue sobreviver. Volta Seca tem em Lampião um mentor. Identifica-se com ele e mata soldados – a representação das injustiças sociais das quais foram vítimas.

O Sem-pernas era marcado por um defeito físico e pela falta de amor. Um cachorro era o seu melhor amigo. Seu papel no grupo era o de fisgar a falsa bondade de algumas pessoas, para tornar-se o espião que orientava os outros onde furtar. Um dia ele engana uma senhora que perdera um filho. A bondade da senhora em tratá-lo como se fosse o filho falecido produz uma força estranha que o arrasta a um conflito ético entre ser fiel ao seu grupo ou se permitir viver essa condição de filho nobre. Saiu do impasse quando entendeu que aquela mulher amava o filho que perdera.  Ele era apenas uma compensação da grande dor que ela sofria. Muitas crianças abandonadas são adotadas e amadas, mas há em sua psique um diálogo entre a mãe que deveria tê-las amado e a que as está amando.  Difícil conciliação. Ele escolheu a morte. Suicidou-se.

Os Capitães da Areia detinham uma identidade fortalecida com os seus valores, atitudes e atividades compartilhadas. É como a arte unindo as cores em sua exuberante expressão do pensamento do artista, ou a música em sua combinação de notas para oferecer a todos toda a alma do artista.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br