Sonhos: reais ou imaginários?

Os sonhos são processos psíquicos estudados por diferentes áreas e principalmente pela psicologia. O ciclo do sono e dos sonhos é interligado. Todos nós sonhamos, porém muitas vezes não conseguimos lembrar do seu conteúdo. De um modo geral, também relacionamos o sonho com a imaginação, o devaneio, o encantamento, a ficção, a utopia e, para muitos sonhar é render-se à ilusão por querer muito alguma coisa. Diante dessas possibilidades, surgem questionamentos se os sonhos são reais ou imaginários.

A vida onírica de Carl Gustav Jung era intensa. Desde cedo, seus sonhos o tocavam muito. Da mesma forma, ampliava os sonhos de seus clientes, que faziam muito sentido para compreensão do psiquismo humano. Em toda obra de Jung, não existe um único livro sobre sonhos, no entanto ele evidencia os sonhos no decorrer da sua teoria. Vale lembrar que pelos sonhos ele se aproximou de Freud e depois foi um dos motivos que gerou desencontro e ruptura com ele.

Segundo Jung, os sonhos podem ser uma reação inconsciente frente a uma situação consciente, que pode surgir a partir de um conflito, contribuindo para modificar uma atitude: “Os sonhos, afirmo eu, comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento” (O/C 8/2, 2013, §487). Também pode ser algo que em princípio não tenha uma relação com a situação consciente, porém com o trabalho de ampliação poderá fazer sentido. O sonho tem diferentes funções e as principais são: compensatória, pedagógica e premonitória. Tanto os sonhos que acontecem no período do sono, quanto aqueles que nos atravessam em vigília, também chamados de devaneios ou fantasias, apontam para nossos desejos mais íntimos e, por isso mesmo, precisamos levá-los a sério.

É importante lembrar que Jung viu o sonho como qualquer outro conteúdo psíquico e fez severas críticas à sua interpretação causal: “Quando se trata de explicar um fato psicológico, é preciso não esquecer que todo fenômeno psicológico deve ser abordado sob um duplo ponto de vista, ou seja, do ponto de vista da causalidade e do ponto de vista da finalidade” (O/C 8/2, 2013, §456).  De modo idêntico, ele nos orienta para serem levadas em consideração as recordações do sonhador, pela evidente relação associativa com o conteúdo do sonho: “Para explicar psicologicamente os sonhos, devemos, portanto, primeiramente investigar as experiências precedentes, de que se compõem. Assim, no que diz respeito a cada uma das partes da imagem onírica, devemos remontar até seus antecedentes (O/C 8/2, 2013, §451). É uma forma de entendermos o simbolismo do inconsciente pessoal e coletivo, em forma de arquétipos, por meio dos contos de fadas, da religião, dos mitos, da arte e de todas as manifestações culturais.

A mitologia grega contribui no entendimento dos sonhos. Hipnos é considerado o deus do sono, que vivia sempre em paz e silêncio. Ele e sua esposa tiveram quatro filhos: Morfeu, deus dos sonhos bons ou abstratos, Ícelo, deus dos pesadelos, Fântaso, criador dos objetos inanimados, monstros, quimeras e devaneios e Fantasia, deusa do delírio e da fantasia. O mais conhecido é Morfeu, um deus alado, que tem a habilidade de assumir qualquer forma humana e aparecer nos sonhos das pessoas.  A frase “vá para os braços de Morfeu”, sugere ter um sono tranquilo, com bons sonhos. Ao mesmo tempo, a história registra que o pai Hipnos e o filho Morfeu, simbolizam avanços para o campo da saúde. Vindo ao encontro, em 1806, o farmacêutico alemão Friedrich Sertüner desenvolveu a alcaloide de ópio, conhecida por morfina, inspirado em Morfeu. Mais tarde, o médico James Braid, em 1843, batizou como hypnotism (hipnotismo) sua técnica de indução de um transe semelhante ao sono.

A nossa cultura reproduz no seu contexto conhecimentos em forma de ditos populares ou provérbios, acerca do ato de sonhar, retratando diferentes realidades. Algumas pessoas são otimistas e afirmam que precisamos “sonhar acordados” ou “sonhar de olhos abertos” para mantermos acesa a chama da esperança diante das dificuldades, até porque “sonhar não custa nada”. Outras, são mais ponderadas, afirmando que “visão sem ação é sonho” e “uma ideia não executada, transforma-se em sonho”. Há aquelas que alertam sobre as melancolias da vida: “homem só envelhece quando os lamentos substituem seus sonhos”. De forma idêntica, algumas pessoas ironizam situações, talvez com a intenção de tornar a vida mais leve: “o ladrão tem trabalho leve e sonhos ruins” e “o amor é um sonho, e o casamento um despertador”. Isso nos leva a pensar no contexto atual: roubos e sonhos desfeitos estão tão naturalizados!

Os poetas, por sua vez, afirmam em seus versos que “vivemos enquanto tivermos sonhos”. Isso se confirma com Clarice Lispector, que não tinha medida para dizer o que pensava: “Sonhe com o que você quiser. Vá para onde você queira ir. Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos”. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. Enquanto isso, Fernando Pessoa nos convida para refletirmos com seus diferentes olhares: “Dorme, dorme. Dorme, vaga em teu sorrir. Sonho-te tão atento que o sonho é encantamento e eu sonho sem sentir”. Segundo o poeta, sonhar é uma forma de nos tornarmos mais leves: “De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos”. Ele também nos incentiva para sonharmos: “Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”. E Carlos Drummond de Andrade nos deixou falas que exaltam o sonhar e amar: “Que nunca te arrependas pelo amor dado, faz parte da vida arriscar-se por um sonho… Porque se não fosse assim, nunca teríamos sonhado”.

Os sonhos nos acompanham há muito tempo. Independente de credo, eles também envolvem o campo da espiritualidade. Na Bíblia, por exemplo, os sonhos comparecem com o sentido de Deus se manifestar e conversar com seu povo. Existem relatos que naquela época várias pessoas tiveram sonhos de Deus, com planos para o futuro, como podemos constatar em Mateus 1:20-21, ao aparecer em sonho para José um anjo do Senhor, que disse: “José, filho de Davi, não tema receber Maria como sua esposa, pois o que nela foi gerado procede do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.”

Algumas vozes divinas, como a de Maria Bethânia, cantam o que denominamos de sonhar: “Sonho meu, sonho meu, vá buscar quem mora longe, sonho meu. Vá mostrar essa saudade, sonho meu, com a sua liberdade, sonho meu (…) Sinto o canto da noite na boca do vento, fazer a dança das flores no meu pensamento”. Em Sonho Impossível, ela nos fala de persistência: “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder. Vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender. Sofrer a tortura implacável, romper a incabível prisão (…) E assim, seja lá como for, vai ter fim a infinita aflição. E o mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão”. Sonhar nos faz dançar, flutuar e imaginar… Agora Eu Vou Sonhar, com Titãs, convida-nos a mergulhar no sonho: “Agora eu vou sonhar, eu vou sonhar mais alto. E cada sonho meu, há de tornar mais leve o salto. Agora eu vou sonhar, eu vou sonhar mais livre. E vou pedir a Deus que o sonho não me escravize (…) Agora eu vou sonhar, eu vou sonhar maior. E cada sonho meu, há de criar-se ao meu redor.” Raul Seixas, em Prelúdio, convoca-nos para sonharmos juntos: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”. O que será que ele, com seu espírito de profundeza, estava sonhando de olhos abertos?

As teorias e as experiências de consultório nos mostram o quanto é importante prestarmos atenção nos sonhos, tanto os sonhados ao dormirmos, quanto os sonhados acordados. Ampliar esses sonhos que ocorrem durante o sono não é tarefa fácil, pois envolve trazer o inconsciente à luz da consciência, pela associação, ampliação e contextualização, que nos possibilita ressignificar velhos padrões. Sonhar de olhos abertos faz parte da vida, mas não podemos perder o foco no tempo presente. Viver de forma harmoniosa o presente é o que temos de mais precioso. Gonzaguinha, deixa-nos a lição, com a canção Nunca Pare de Sonhar: “Não se desespere, nem pare de sonhar. Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs, deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar. Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais, vamos lá fazer o que será”!


Claci Maria Strieder, Analista em formação pelo IJEP

Imagem: Morfeu e Íris – Por Pierre-Narcisse Guérin, 1811.

Leituras de apoio:

ANDRADE, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

JUNG, C. G.  A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2013.

___________ Seminário sobre Sonhos de Criança. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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