“Sonhos” de Akira Kurosawa

Quando eu era criança o meu pai trabalhava no Polo Petroquímico. A sua empresa tinha sócios japoneses, e a cada 15 dias ele dava volta ao mundo para ver o sol nascer duas vezes. Sempre disciplinado, tentou entender melhor a cabeça dos sócios mergulhando de cabeça na sua cultura. Leu livros, viu filmes e aprendeu a falar (e escrever!) japonês. Foi assim que eu conheci a trilogia Samurai (1954-1956) sobre o herói nacional do Japão, Musashi Miyamoto. E foi assim que eu conheci também a obra de Akira Kurosawa, o maior – ou, pelo menos, o mais famoso – dos diretores japoneses.

Kurosawa era conhecido pelos seus judaigekis. Eram filmes passados no Japão medieval que retratavam a vida dura (e heroica) dos rônins, os samurais sem mestre. Esses filmes estavam carregados do código de honra dos samurais, o bushidô, admirado pelo diretor. Kurosawa tinha orgulho de ser descendente de um clã de samurais e fez do bushidô a sua bússola moral.

           

Engraçado… Não foram esses filmes que me marcaram. Da sua vasta e premiada obra de Kurosawa foi Sonhos (1990) que ficou comigo todos esses anos. Não tinha o ritmo frenético de Rashomon (1950) ou Trono Manchado de Sangue (1957), mas ele era enigmático. Ver Sonhos para mim era a sensação de ver um filme de David Lynch: você gostava, mesmo sem entender nada. Sonhos, nesse sentido, era um filme que me convidava a entendê-lo. Ou melhor: ele me desafiava a decifrá-lo.

           

Foi na minha pós-graduação do Instituto Junguiano da Bahia (IBA) que resolvi rever Sonhos. Qual era, afinal, o sentido do filme? Fiz como meu pai: mergulhei fundo para entender tudo sobre o tema.

Logo no começo do processo refleti sobre qual seria o motivo do meu encanto com Sonhos. A cenografia (sempre impecável nos filmes de Kurosawa) ajudava, mas não. Era algo mais profundo, além de detalhes técnicos sobre refletores e lentes de câmera. Seria porque Sonhos tem histórias de fantasma? Gosto delas desde pequeno. Ou seria porque os oito episódios do filme tem um quê de conto de fada, de mitológico? Lembro-me de ter ganhado um livro de mitos da Grécia quando eu tinha uns seis, sete anos. Foi aquele livro de capa dura, preta e laranja – presente de minha mãe – que abriu para sempre as portas de minha imaginação.

(Foi coincidência eu ter virado Junguiano?).

Agora sei o que realmente me cativa em Sonhos. Ele é um filme feito por um homem de oitenta anos, contado através dos olhos de uma criança. Isso é um sinal de que Kurosawa foi um dos raros homens que nunca deixou a sua imaginação morrer. Quanta sapiência!

No processo de escrever o TCC tive de aprender mais sobre zen-budismo e xintó, as grandes religiões do Japão. Sempre tive simpatia pelo budismo do estilo zen, mas o xintó foi novidade. Entender ele é fundamental para entender Sonhos. Sem ele suas assombrações e deuses animistas ficariam sem sentido. Tem também aquele elemento de cultura pop japonesa. O sexto episódio de Sonhos, p. ex., parece ter saído direto de um filme de Godzilla!

Três meses e quase noventa páginas depois eu entreguei o TCC em dezembro de 2012. Minha orientadora, Ermelinda Ganem, ficou encantada com o trabalho. Acabei fazendo duas palestras virtuais pelo Instituto e convidado a ensinar lá no IJBA.

Quatro anos depois, qual não foi a minha surpresa de receber um convite para lançar um livro! O convite chegou via e-mail pelas Novas Edições Acadêmicas, editora alemã especializada em lançar teses e dissertações em livro. Devo agradecer ao IJBA pela oportunidade de rever velhos sonhos (trocadilho infame) e realizar novos.

Quem sabe um dia eu poderei olhar para trás e, assim como Kurosawa, ver os meus sonhos realizados?