O Componente Homossexual-Heterossexual e Alma na Narrativa Junguiana

Como tratar o tema da homossexualidade/heterossexualidade e Anima em Jung sem colocar em questão o que quer dizer “o mesmo” e “o outro”? O prefixo grego “homo” indica igual ou o mesmo enquanto “hetero” carrega o sentido de diferente. O diferente ou o “outro” assim como o “mesmo” surgem nos textos Junguianos de várias formas. Destaca-se neste texto o aparecimento ligado a temas da Sombra, Anima e Self Ou Si-mesmo.

Embora a perspectiva Junguiana privilegie o olhar poético/mítico ou metafórico como olhar da psique, tratar o tema de forma literal tem sua importância e valor; este pode ser percebido nos efeitos na sociedade e nos sujeitos desde 1973 quando a homossexualidade deixa de ser classificada como um transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1985 Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP), deixaram de considerar a homossexualidade um desvio sexual. Em 1990, a Assembleia-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, a Classificação Internacional de Doenças (CID).  Porem embora isto represente avanços importantes na barragem do dogmatismo e da visão unilateral dominante a categoria foi substituída.

(…) em 1973, a APA aceita que a homossexualidade não poderia ser considerada patológica. Assim, surge a categoria “homossexualidade egodistônica”, reunindo sujeitos que vivenciam a homossexualidade de forma conflitiva, mas que gostariam de se ver livres dessa condição. (…) O diagnóstico de homossexualidade egodistônico substituiu a categoria de “distúrbio de orientação sexual”. (DUNKER & KYRILLOS NETO, 2011)

O que permanece, atualmente, no décimo código internacional das doenças da OMS (CID X) dentro da categoria F66: Transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientação sexual é:

F66.1 Orientação Sexual Egodistônica

A identidade ou preferência sexual não está em dúvida, mas o indivíduo deseja que isso fosse diferente por causa de transtornos psicológicos e comportamentais associados e pode procurar tratamento para alterá-la.

(CID-10 OMS , 1993) P.217

Pode-se depreender dos textos do CID X e do DSM-IV que indivíduo ou pessoa é a base a partir da qual os códigos são construídos . A forma indivíduo  pode ser vista como o que configura a encarnação aglutinada dos atributos do sujeito moderno (único, independente, autônomo, autodeterminado, espontâneo, genuíno, instância autárquica dona da vontade livre etc.) e que os transtornos são os elementos que fazem sofrer ou limitam a suposta liberdade desta forma, tomada como a norma de vida saldável e bem realizada.

Não causa surpresa que seja classificado como transtorno a distonia com o ego; ou seja aquilo que não esteja em consonância com este. Como se o ego fosse o centro ou e a referência maior para a individualidade em relação à qual deve ser determinada a identidade vinculada a orientação sexual. Tanto que no texto do CID X fala-se: “identidade ou preferência sexual” como se houvesse equivalência entre os termos, como se preferência sexual fosse quase sinônimo de identidade. Esta posição difere da colocada por Jung quando fala que a psique extraconsciente “relativizou a posição até então absoluta do eu, quer dizer, este conserva a condição de centro do campo da consciência; mas como ponto central da personalidade tornou-se problemático.”  (JUNG, 1982) §11.

Para rever o tema alguns conceitos naturalizados precisariam ser problematizados, dissolvidos em sua literalidade e metaforizados. Seria preciso reimaginar: identidade, ligada a processos de identificação e seus correlatos com as noções de um e múltiplo; o mesmo ou o igual e o diferente; Individualidade e indivíduo, individuação, personalidade. Estes temas serão aprofundados na sequência. Entretanto, estrategicamente, pode-se começar com a pergunta: O que é orientação ou preferência sexual?

Preferência seria expressão de desejo? O que é desejo? Desejo de quem (Ego, Self, Sombra, Persona etc.)? Desejo de quem em cada um e na sociedade e na cultura? Desejo seria manifestação da vontade? Está explícito no texto Junguiano a importância do pensamento de Schopenhauer, para quem a vontade surge como essência e princípio do mundo na alternância entre dores e prazeres, faltas e satisfações, desejos e decepções um “querer sem dono, transindividual, cego e sem razão, em sua tenebrosa e abismal perpetuação.” (DIAS, 1997). Se a vontade, para Schopenhauer, é independente da representação e, portanto, não se submete às leis da razão como associá-la a identidade ou preferência sexual? Neste sentido de reflexão o desejo desdobra-se e pode não estar apenas vinculado a busca de uma parte ou um objeto perdido como no mito descrito por Aristófanes no Banquete de Platão (1972) , mas pode ser desejo de integralidade que abarca o desconhecido, o enigmático; desejo de vir a ser, de se transformar, de devir outro, sem abandonar o que parece eu; de ser desejado ou de ocupar o lugar de objeto do desejo; de não continuar sendo apenas os aspectos com os quais o Eu identificou-se; de reconhecer no que parece mais outro os traços do que foi excluído no processo de constituição do Eu e poder se libertar de ter que ser conduzido apenas pelo Eu?

Uma das formas como o tema do desejo aparece na narrativa Junguiana é ligado a Anima como uma forma de “outro” para o Eu e/ou para a personalidade consciente: A. Anima como personificação do inconsciente  apresentaria um “outro” que enlaça, absorve, gera ilusões e pode gerar atração; “é o consolo que compensa as agruras da vida, mas é também, apesar de tudo, a grande sedutora, geradora de ilusões em relação a esta mesma existência.” (JUNG, 1982) §24. Porém sua influência deve-se não apenas aos aspectos racionais e utilitários “como também a seus paradoxos e às suas ambiguidades terríveis em que contrabalançam o bem e o mal, o êxito e os fracassos, a esperança e o desespero” (JUNG, 1982) §24.

Como “a consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição” (JUNG, 1984) §132 sobre “todos os elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são incompatíveis” (JUNG, 1984) §136. E, todo “julgamento é parcial e preconcebido, porque escolhe uma possibilidade particular, à custa de todas as outras.”  (JUNG, 1984) §136. Ou seja a consciência julga a partir do que parece ser conhecido na experiência para um padrão complexo e não no que é novo ou desconhecido. Seria por isto que a Alma ou o inconsciente regula e resiste tanto a função objetificadora na consciência quanto a função de julgamento que leva a unilateralidade. Anima, como inconsciente, não está submetida ao tempo e ao espaço e a nenhuma forma determinada, mas ao mesmo tempo produz tudo que assim aparece. A alma poderá se apresentar como qualquer outro do daquilo que foi determinado na consciência e mesmo como algo irrepresentável.

Embora Jung afirme que Anima aponte “inelutavelmente para a mãe” (JUNG, 1982)§20 ou melhor para a imago materna; “não se trata de uma figura substitutiva da mãe; pelo contrário: temos a impressão de que as qualidades numinosas que tornam a imagem materna tão poderosas originam-se do arquétipo coletivo da Anima (…)” (JUNG, 1982)§26. Jung fala na anima ligada a um eros (desejo) passivo que espera ser “captado, sugado, velado e tragado” (JUNG, 1982)§20, distanciando-se do mundo exterior. Jung descreve também um desejo como anseio de viver e amar o mundo; tocar “o mundo real” com suas mãos, mas a secreta recordação de que pode receber de presente o mundo e a felicidade paralisa as forças propulsoras. Dai a necessidade de um “Eros desleal” (JUNG, 1982)§22; as virtudes da fidelidade, dedicação e lealdade a imago materna serviriam para preservar contra o dilaceramento ligado à aventura  da vida.

Quando Jung fala neste texto de “caráter homossexual” (JUNG, 1982) §22 estaria falando de personalidade ou de identidade ou preferência sexual? O texto não é centrado na literalidade, ao contrário, refere claramente que com relação a anima prefere de modo “consciente e intencional (…) as maneiras de exprimir intuitivas e dramáticas da mitologia (…) mais preciso do que a linguagem científica abstrata (…) (onde as intuições) poderiam ser substituídas por equações algébricas.” (JUNG, 1982) §25. “Caráter homossexual” pode ser interpretado como o risco da atração pelo mesmo ou pelo que parece conhecido e então poderia surgir em todos. Jung trata das perigosas consequências da assimilação do novo pelo “conhecido” (o mesmo, “homo”) quando fala dos riscos de “um fator significativo, instintivo que é a libido de parentesco.” (JUNG, 1978) p.98.

(…) perigo da “afinidade” com projeções enganosas e seu impulso de assimilar o objeto (…) isto é familiarizá-lo, a fim de realizar a oculta situação incestuosa, a qual parece tanto mais atrativa e fascinante quanto menos a compreende. (JUNG, 1978) p.104

Haveria o perigo de assimilar o objeto tomando-o como familiar, não valorizando os aspectos novos e desconhecidos ou inconscientes. Entendendo-se que no presente vivo não há repetições possíveis pois nem o contexto é o mesmo, nem quem vive é igual; só haveria a repetição como efeito de igualdade abstrata conceitual; como igualdade de conceitos que configuraram-se de forma complexa a partir de traços abstraídos de um contexto outro.

Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única, à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual.  (NIETZSCHE, 1978) p.48

Assim através do uso dos conceitos abstratos e matemáticos pode-se chamar de igual aos desiguais e não saber mais o que quer dizer igual ou diferente.

Jung afirma que há sempre um certo condicionamento psíquico que se interpõe ao imediatamente dado (o mundo ou a vida presente com a dissolução ou o dilaceramento da unidade na transformação continua e na infinitude de sentidos). A isto ele chamou de “situação da experiência” (JUNG, 1984) §195. Haveria uma tendência no sujeito que o leva a interpretar de determinada maneira – assimilação. Jung citando Condillac refere que: “Não há processos psíquicos isolados, como não existem processos vitais isolados.” (JUNG, 1984) §197, desta forma a consciência pode assumir o papel de “complexo assimilante” (JUNG, 1984) §197. Isto faz com que tudo apareça na psique associado em algum complexo e todas as coisas só possam aparecer em relação. Uma vez que “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999) p.33 todo aparecimento na psique só poderia se dar em complexo que configuram imagens . Um complexo afetivo é uma imagem de determinada situação psíquica “dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia.” (JUNG, 1984) §201.

O papel de “complexo assimilante” da consciência procuraria realizar a oculta situação incestuosa? Esta seria tão mais atraente e fascinante quanto menos é compreendida. Poderia esta fascinação e atração estar relacionada com as manifestações anímicas que fazem com que algo ou alguém apareça ao sujeito como fascinante e mesmo sexualmente atraente?  Hillman também aponta nesta direção quando afirma que “Quando este instinto de totalidade se manifesta ele aparece primeiro disfarçado no simbolismo do incesto” (HILLMAN, 1985) p.20.

A Anima pode ser a condutora e até mesmo a imagem da “totalidade”, entretanto o sentido de totalidade pode ser confundido com o todo matemático, abstrato ou conceitual como se o que o desejo buscasse fosse um objeto faltante perdido como no mito de Aristófanes em Platão onde no princípio existiam três gêneros: homens, mulheres e andróginos; os seres eram um “todo” com quatro pernas braços, dois rostos e dois sexos – “éramos um só, e agora é que por causa de nossa injustiça fomos separados pelos deuses” (PLATÃO, 1972) p.31.

Ver a Anima como personificação do inconsciente não significa transformá-la num personagem literal. Jung, diante da pergunta se o inconsciente é capaz de formular uma crítica de algum modo construtiva para nossa mentalidade de homens ocidentais? Jung aponta que: “seria realmente um absurdo se tomássemos o problema do ponto de vista intelectual e atribuíssemos ao inconsciente uma psicologia consciente. (…) não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os moldes daquilo que entendemos por “pensar”. Ele somente cria uma imagem que responde à situação da consciência;” (JUNG, 2001) § 289. Como fala Hillman em Mito da Análise (HILLMAN, 1984),  o termo “inconsciente” e portanto Anima não deveria ser usado, nem para indicar comportamento inferior, ignorante, instintivo; nem mesmo ser tratado como uma pessoa à qual se possa pedir opiniões. Jung também corrobora quando afirma: “Acho, no entanto, que seria um erro supor que em tais casos o inconsciente atua segundo um plano geral e preestabelecido, tendendo para uma determinada meta e sua realização. Jamais encontrei algo que pudesse fundamentar tal hipótese.” (JUNG, 2001) §291.

A questão da atração e do fascínio estão ligados a Anima pois ela é a personificação dos traços, tendências e mesmo conteúdos que foram excluídos da vida consciente através de suas funções unilaterais? “O fato do rotundum estar contido na Anima e por ela ser pré-figurado dá-lhe um extraordinário fascínio.” (JUNG CW 14 §500 apud (HILLMAN, 1985) p.20); a figura de anima aparece como verdadeira portadora de tão desejada totalidade e redenção – “ela soma tudo aquilo que um homem nunca pode vencer com o qual nunca para de lutar” (JUNG, CW 9, i, §485 apud (HILLMAN, 1985) p.16.)

Hopcke citando Jung refere que: “O jovem em crescimento deve ser capaz de libertar-se da fascinação da mãe.”  (CW 9, part I p.71 apud HOPCKE, 1991, p. 37) afirma a homossexualidade como identificação com a Anima  porem isto poderia ser a resistência em identificar-se com o papel de um ser sexualmente unilateral ou uma separação incompleta do arquétipo do hermafrodita e poderia preservar o arquétipo do homem original. Mas o que pode querer dizer “homem original”?  Se “O homem puramente natural, em sua ingenuidade espontânea amplia a tal ponto sua personalidade que o eu normal em grande medida desaparece,” (JUNG, 1978) p.130. O homem original não seria uma figura literal, mas talvez possa indicar algo próximo ao paradoxo ou a antinomia do Si-mesmo.

Como aponta Hillman a Anima dá um sentido de individualidade que é uma mera insinuação “Porque ela carrega em seu ventre nosso vir-a-ser individualizado, somos atraídos para o fazer alma.” (HILLMAN, 1985) P.29. Um processo de devir outro sem deixar o Eu – o paradoxo do Si-mesmo – Uma unidade emergente que não é o Eu anterior em sua ficção, senão que um outro. O “mesmo” se dá conta que arrasta o “outro” que pouco a pouco se manifesta “constitui uma dualidade e mesmo uma multiplicidade (…) com isto se opera o “obscurecimento da luz”, isto é a despotencialização da consciência e uma desorientação a respeito do sentido e da órbita da personalidade” (JUNG, 1978) p.60. A unidade que Jung faz referência não é a unidade equivalente, que pode ser medida, trocada ou contabilizada por cálculos matemáticos e sim na “unidade da concepção divina” (JUNG, 1978) p.59 que não seria submetida ao tempo, espaço e portanto nem tampouco a mensuração.  Esta unidade do “Si-mesmo” que nunca perderia o sentimento doloroso de sua natureza tensional entre múltiplos e um. Recuperar a integralidade seria recuperar “os outros” e o que mais outro para o ser do que o nada, o desconhecido, inconsciente, enigmático e paradoxal? Isto leva a pensar que fazer alma como diz Hillman em “pensamento do coração” aparece como a inspiração do suspiro de espanto (Ah!) (HILLMAN, 2010a) p.49; a surpresa diante do reconhecimento do novo e do desconhecido. Alma dissolve e coagula. “Ela (Alma) carrega a nossa morte; a nossa morte esta alojada na alma” (HILLMAN, 1985) p.37.  Pode-se entender que a Anima como a personificação do Inconsciente não se submete ao tempo, espaço ou a qualquer determinação da consciência ela carrega a morte desta e de toda configuração determinada e conscientemente unilateral. Mas, é assim que ela anima a vida.

Pode-se personificar o inconsciente como outro que pode surgir como figura chamada “outro sexo” ou “mesmo sexo” mesmo não podendo-se estar certo nem do que é sexo nem do que é outro ou mesmo. Afinal a natureza do inconsciente não é paradoxal?

Si-mesmo – O Eu que parece ou pensa ser ele “mesmo”  pensa, quer etc. “se racha e se dissolve como consequência do choque com o inconsciente” (JUNG, 1978) p.60; o resultado do processo é que “o homem puramente natural, em sua ingenuidade espontânea amplia a tal ponto sua personalidade que o eu normal em grande medida desaparece (…)” (JUNG, 1978) p.130. E o que surge é “a nova personalidade (que) não é um terceiro entre o consciente e inconsciente, se não que é os dois juntos. (…) não deve ser qualificada de Eu mas de si – mesmo.” (JUNG, 1978) p. 131. Ou seja, a realização do Si-mesmo (“mesmo”) passa pelo choque com o inconsciente e a integração do que parece mais “outro” sem a perda do Eu (ou do “mesmo”). Isto aproxima-se da noção de integralidade em Jung que não é um estado perfeito. “(…) não há integridade anímica sem imperfeição” (JUNG, 1989) p.109. Ela inclui a imperfeição, o mistério, o desconhecido e só pode ser vista como uma aporia ou um paradoxo – “A totalidade não constitui um estado perfeito, sim de uma integridade” (JUNG, 1978) p.103. A totalidade pode ser uma forma de falar da recuperação de algo que não pode se submeter as formas categoriais ou forma objeto. “A totalidade do homem só pode ser descrita por meio de antinomias. O si – mesmo irradia sua unidade como o incognoscível e incompreensível.” (JUNG, 1978) p.180. “O Si-mesmo é um conceito transcendente, pelo fato de exprimir a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a forma de antinomias.” (JUNG, 1982) §115. Por isso “a coniunctio é uma união de deuses e não um assunto amoroso dos mortais. (JUNG, 1978) p.157. E “a Alma aparece como essência de relação” (JUNG, 1978) p. 16. Jung em Aion (JUNG, 1982) critica a doutrina de Santo Agostinho do “privatio boni” buscando recuperar que o Mal não é apenas a ausência do Bem, ou seja não é o outro do Bem.

Também ao falar da Sombra – O “outro” pode surgir personificado, mas aglutinando os elementos psíquicos vividos como incompatíveis, negativos e mesmo ameaçadores e mesmo que a “personalidade consciente” (o padrão dominante na consciência) recuse-se a conhecer e admitir, este outro se impõe de alguma forma.

Para aprofundar no que é descrito como Homossexual/Heterossexual um dos caminhos é reimaginar o tema e a questão. Como esta foi problematizada em diversas versões e momentos? Perguntar-se “o que é” isto que é chamado “Homossexual/Heterossexual” para dissolver enquanto se especifica. Quais os atributos, as múltiplas relações de significados, disposições, eventos históricos, detalhes qualitativos e possibilidades expressivas que se auto-delimitam e que surgem agora aglutinados nesta palavra. Pode-se buscar a alma nas palavras “Homossexual/Heterossexual”, vista então como mensageiros portadores de sentido metafórico; cheio de poderes invisíveis sobre as pessoas. Assim como outras palavras, “homossexualidade” é uma presença que tem etimologia, história e pode ser personificada – “as palavras são pessoas” (HILLMAN, 2010) p.54. Assim reimaginar “Homossexual/Heterossexual” olhando-a na perspectiva metafórica, a perspectiva da alma ou da psique. Pode-se revisitar o tema em várias em momentos que foi colocado em questão e descrito ou problematizado. Pergunta-se para quem, para que estilo de consciência isto aparece desta forma.

Pode auxiliar retomar um trecho em que Jung no texto Tipos Psicológicos um caráter homossexual quando fala sobre a “Imagem da Alma” (JUNG, 1981a) p.519.

Regra geral, entre os homens, a alma é representada pelo inconsciente como pessoas do sexo feminino e entre mulheres como pessoas do sexo masculino. Nos casos em que a individualidade esta inconsciente, e está portanto, associada a alma, esta reveste-se de um caráter homossexual. (JUNG, 1981a) p.519

Ele está falando da imagem da alma como uma produção do inconsciente. Lembrando, ele já havia dito pouco antes no texto que “quando falo imagem na presente obra, não me refiro a reprodução psíquica do objeto externo, mas sobretudo, a uma visão que promana do uso da linguagem poética, (…)” (JUNG, 1981a) p.513 e lhe é inerente um valor mais amplo (do que realidade), um valor psicológico, representa uma realidade intima. “O indivíduo não se orienta no sentido da adaptação à realidade, mas no sentido da adaptação ao requisito íntimo.” (JUNG, 1981a) p.514.

Assim como a persona, a aparência externa, é representada em sonhos pela imagem de determinadas pessoas que evidenciam de forma bastante acentuada, as qualidades correspondentes, também a alma, a disposição intima, é representada pelo inconsciente através de determinadas pessoas que possuem as qualidades correspondentes da alma. A essa imagem chama-se imagem da alma. (JUNG, 1981a) p.519

Ficar com a “imagem da alma” pode ser aprofundar na sua intimidade de sentidos, significados etc. Colocar alma como “disposição intima” pode ser uma forma de dizer que é disposição intima da imagem? “Ela (alma) atua como metáfora, transpondo sentidos e libertando significados interiores enterrados (…)” (HILLMAN, 1983) p. 47.

O texto Junguiano segue com:

(…) A essa imagem chama-se imagem da alma. Por vezes trata-se de pessoas completamente desconhecidas ou personagens mitológicos. Regra geral, entre os homens, a alma é representada pelo inconsciente como pessoas do sexo feminino e entre mulheres como pessoas do sexo masculino. Nos casos em que a individualidade esta inconsciente, e está portanto, associada a alma, esta reveste-se de um caráter homossexual. (JUNG, 1981a) p.519

Seguindo a narrativa sobre a imagem da alma, “(…) a alma, a disposição intima, é representada pelo inconsciente através de determinadas pessoas que possuem qualidades correspondentes da alma” (JUNG, 1981a) p.519. As “pessoas podem representar” pode ser uma forma de dizer que haveriam pessoas que por constelarem determinados atributos e estarem dominadas por determinados padrões complexos, poderiam ser suporte para a personificação da Alma? Está claro que podem ser pessoas completamente desconhecidas ou mesmo personagens mitológicos. Isto implica que não há objeto predeterminado ou definido para a imagem da alma!

Nos casos onde há “identidade com a persona” a imagem da alma é transferida para uma pessoa que nunca é exatamente a imagem projetada e por isso tem caráter de “coisa imediatamente dada” que suscita réplicas.

Em todos os casos que se observa identidade com a persona e em que, portanto, a alma é inconsciente, a imagem da alma aparece transferida para uma pessoa real. Esta pessoa é objeto de um amor intenso ou um ódio igualmente intenso. A influência que essa pessoa exerce tem um caráter de coisa imediata e dominante, uma vez que suscita sempre réplicas afetivas. (JUNG, 1981a) p.519

Jung aponta consequências na projeção da imagem da alma em objetos exteriores pois “A projeção de imagem da alma dispensa que nos ocupemos dos processos interiores, na medida em que o comportamento do objeto concorde com a imagem da alma. O sujeito fica em condições de viver sua persona e de continuar o desenvolvimento” (JUNG, 1981a) p.520. Não se ocupar com processos interiores pode ser importante em alguns momentos da vida, mas como todo padrão se ele tornar-se dominante não levaria a dominação e a unilateralidade? Esta situação poder ser considerada vantagem num momento, porem ressalta-se na sequência que esta situação é difícil e repleta de vicissitudes como desprezo da própria vida ou ser impelido a agir por cima de sua verdadeira capacidade.

A longo prazo, será difícil, por certo que se encontre sempre um objeto em condições de corresponder às exigências de imagem da alma, embora haja mulheres que, com desprezo da própria vida, conseguem representar durante muito tempo, para seus maridos a (p.520) imagem da alma. Para isso, são ajudadas pelo sentido biológico feminino.  O mesmo pode um homem fazer para sua mulher, inconscientemente, apenas com a diferença que isto o impelirá para fatos e ações que, no bom e no mau, estarão, em última análise, por cima de sua verdadeira capacidade. Também acorre em sua ajuda o instinto biológico masculino. (JUNG, 1981a) p.520-521

Ou seja viver a identidade com a persona e “continuar o desenvolvimento” pode ser favorável, mas está longe de ser uma forma de vida não problemática. Pode tornar-se dominação unilateral dissociar-se entrar em cisão e conflito fazendo com que os elementos dissociados e rechaçados surjam como sintomas para o Ego identificado com a Persona. No entanto a possibilidade de inadequação entre a imagem da alma e os objetos no mundo não deveria ser vista como ameaça ou elemento a ser evitado. Pode-se depreender do texto que a inadequação é uma forma de elaboração e trabalhar a relação com os objetos e com o inconsciente.

Se a imagem da alma não for projetada, com o tempo terá lugar uma diferenciação realmente patológica com o inconsciente. O sujeito é inundado, num grau cada vez maior, pelos conteúdos inconscientes que, devido à relação insuficiente com o objeto, não pode valorizar nem elaborar de maneira nenhuma. (JUNG, 1981a) p.521

Assim a inadequação pode ser a apresentação do que resiste ao que foi configurado como objeto para a consciência – como imagem da alma. “Os afetos são sempre presentes onde quer que haja uma adaptação fracassada. A adaptação consciente ao objeto que representa a imagem da alma é impossível, justamente porque a alma é inconsciente em relação ao sujeito.” (JUNG, 1981a) p.519. Embora “como veículos reais de imagem da alma, para o homem o melhor de todos é a mulher, devido à qualidade feminina de sua alma e para a mulher é o homem. (JUNG, 1981a) p.520, a inadequação pode ser considerada fundamento essencial para os afetos a elaboração. “O afeto tem sua origem no fato de ser impossível uma adaptação consciente ao objeto que representa a imagem da alma. Devido à impossibilidade de uma relação objetiva e à sua inexistência, a libido é estancada e explode numa descarga afetiva.” (JUNG, 1981a) p.519. A inadequação pode remeter a “temor e a resistência são os marcos indicadores que balizam a via régia em direção ao inconsciente.” (JUNG, 1984) §212. Mas, como Jung mesmo diz, a via quase nada tem de régia, assemelhando-se muito mais a atalhos ásperos e sinuosos que, frequentemente, se perdem num bosque cerrado e muito vezes passa ao largo do âmago do inconsciente – (JUNG, 1984) §210.

(…) com muita frequência a alma será inconsciente, (…) essa inconsciência está sempre emparelhada à concomitante identificação total com a persona, (…) o caso em que a imagem da alma não é projetada, conservando-se no sujeito e dando assim lugar a uma identificação com a alma, na medida em que o sujeito em questão se convence de que a maneira e o modo como se comporta, a respeito de seus processos interiores, constitui seu caráter único e verdadeiro. (JUNG, 1981a) p.520

Seguindo a valorização positiva do que aparece como resistência, o erro ou falha, a situação mais problemática, mais próxima da unilateralidade, estaria na identificação total com “a persona” ou com “a maneira e o modo como se comportar a respeito de seus processos interiores”. Pior ainda seria a crença que qualquer destes elementos constitui o “caráter único e verdadeiro” do sujeito. Nesta configuração o sujeito perderia sua potência de indeterminação e com isto a possibilidade de mudança e transformação viva. Afinal Jung atribui ao sujeito elementos de indeterminação vagos e obscuros e que surgem como perturbação e obstáculo ao que parece claro como objeto para a consciência

Entendo por sujeito, convêm dizer desde já, todos aqueles estímulos, sentimentos, pensamentos, e sensações vagos e obscuros que não é possível demonstrar que promanem da continuidade da vivência consciente do objeto, mas que pelo contrário, surgem como perturbação e obstáculo, (…) (JUNG, 1981a) p.478

Há a referência de que haveriam casos de identificação com “a maneira e o modo como se comportar a respeito de seus processos interiores” e que a persona seria projetada e que isto seria a base de muitos casos de homossexualismo, mas não apenas, também de transferências entre homens e mulheres.

Neste caso a persona será projetada, em virtude de seu caráter inconsciente, verificando-se essa projeção num objeto do mesmo sexo, o que está na base de muitos casos de homossexualismo mais ou menos latente, mais ou menos declarado ou de transferências paternas entre homens e maternas entre mulheres. (JUNG, 1981a) p.520

A questão pode ser mais a identificação fixa; quer seja modo como se comporta, a respeito de seus processos interiores ou com a persona etc. pois se há o domínio permanente de um complexo insuperável o sujeito estará morto para o meio ambiente pois seu interesse estaria exclusivamente no complexo. (JUNG, 1999)

Na sequência volta-se ao tema da inadequação com expressões como “adaptação exterior defeituosa” acrescido da “relativa desconexão”.

Tais casos observam-se sempre em indivíduos de adaptação exterior defeituosa e relativa desconexão, pois a identificação a alma dá origem a uma disposição que se orienta, acentuadamente, pela percepção de processos inferiores, assim se privando o objeto de sua influência condicionante. (JUNG, 1981a) p.520

A disposição pela percepção de processos inferiores seria efetivamente desfavorável? Assim como a função inferior está longe de ser algo negativo na teoria Junguiana a adaptação habitual não é vista como algo apenas favorável; “É sabido que o indivíduo normal de maneira alguma se caracteriza pela claridade especial, pureza e profundidade de seus fenômenos psicológicos, quando não pela superficialidade e inconsistência geral dos mesmos.” (JUNG, 1981a) p.521. Os exemplos deixam evidente as dificuldades nos processos de adaptação e identificação aos atributos valorizados coletivamente e o caráter regulador do inconsciente

Nos indivíduos em que a disposição exterior evidencia um caráter bondoso e não-agressivo, a imagem da alma tem regularmente um caráter maligno. (…) O homem depravado é, amiúde, para as mulheres idealistas, o veículo da imagem da alma, daí resultando as fantasias salvadoras que são frequentes em tais casos. O mesmo acontece com os homens, entre os quais a prostituta aparece com o resplendor da gloria da alma a ser salva. (JUNG, 1981a) p.521

E, se for traçada uma aproximação com os textos de Canguilhem, o que caracteriza a saúde é a capacidade de ter distância e inadequação ou desconexão da norma habitual. Já a completa adaptação ou absorção pelo meio seria a doença: “O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.” (CANGUILHEM, 2000) p.160. Jung também afirma que há algo nas questões singulares que precisam ultrapassar a adequação coletiva – “um problema pessoal não pode se enquadrar em uma norma coletiva” (JUNG, 1984) §143. Não existiria nenhuma norma coletiva que poderia substituir a criação de uma posição singular do sujeito no momento em que está vivendo, sem que isto implicasse em perdas; “não existe absolutamente nenhuma norma coletiva que possa substituir uma solução individual, sem perdas.” (JUNG, 1984) §142.

Os exemplos apresentados por Jung fazem referência a homens e mulheres porem ele se vale da expressão “regra geral” que permite a interpretação de que não se trata de uma identidade, um conceito, uma abstração ou aquilo que se submeteu a contabilidade e ao cálculo. A “regra geral” pode ser entendida como uma apresentação comum, frequente e não um conceito, verdade ou paradigma. Quando é dito que como “veículos reais de imagem da alma, para o homem o melhor de todos é a mulher, devido à qualidade feminina de sua alma e para a mulher é o homem.”  (JUNG, 1981a) p.520, pode estar sendo ilustrado situações frequentes e não afirmando-se que o homem como identidade conceitual tem como imagem da alma a mulher. Segundo Hopcke “Jung claramente não dá suporte a existência de uma personalidade homossexual universal presente em homens ou mulheres com sentimentos pelos mesmos sexos” (HOPCKE, 1991) p.29. E pode-se questionar se haveria suporte para identidades de forma geral. O texto Junguiano questiona a fixidez do componente tanto heterossexual como homossexual e afirma “a grande mobilidade do componente sexual” (HOPCKE, 1991) p.16.

Hopcke, citando Jung, diz que para explicar mudanças neste cenário são necessárias hipóteses dinâmicas; “(…) alterações no sexo podem ser pensadas somente como dinâmicas ou processos energéticos” (HOPCKE, 1991) p.17. Segue afirmando a flexibilidade ou invés da fixidez de componentes e que o componente homossexual na consciência de um homem mostra-se “(…) mais diretamente em peculiar irritabilidade, uma especial sensibilidade em relação a outros homens.” (HOPCKE, 1991) p.17 .

Pode-se refletir que para além das identidades haveria o senso comum do que é homem ou mulher? Do que são os gêneros. No entanto o quanto os atributos de gêneros já não variaram histórica e culturalmente? Este ponto permite múltiplas interpretações. O risco é a dominação da leitura literal e achar que se sabe o que se está falando quando se diz homem ou mulher e que corresponde a uma das representações literais e não de uma linguagem poética.

O que é homem? Seria a forma que aglutina as funções parciais como Jung mesmo descreve? – “as funções parciais foram em grande parte postas a serviço do Eu (vontade do homem) levando a uma dissociação entre uma autoconsciência e um inimigo invisível. Isto poderia fazer sucumbir a uma vontade tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-humanidade demoníaca” (JUNG, 1978) p. 57.  No entanto ele mesmo diz que “a aparente unidade da pessoa que declara com firmeza: “eu quero, eu penso etc., se racha e se dissolve como consequência do choque com o inconsciente” (JUNG, 1978) p.60. A unidade da consciência é uma mera ilusão; um sonho de desejo. Que gostamos de pensar que somos unificados, mas isso não acontece nem nunca aconteceu.

Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da consciência ser mera ilusão. É realmente um sonho de desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Realmente não somos senhores dentro de nossa própria casa. E agradável pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. (JUNG, 1983) p. 67

Jung diz também que as ilusões e ficções são efeitos do “cone de luz da consciência” que reprimem outras manifestações, o “homem” torna-se um problema. “A consequência disto é o homem se tornar um problema difícil, o que em essência é.” (JUNG, 1978) p.103.

Ao entender-se “homem” poeticamente pode-se abrir outras leituras. Há “homens” metafóricos em qualquer vivente e mesmo pode-se dizer de uma casa, um carro ou uma faca homem?

Jung segue ao falar sobre a imagem da alma em Tipos Psicológicos dizendo que “Nos casos em que a individualidade é inconsciente e está portanto associada a alma” (JUNG, 1981a) p.519.  Quais os casos em que a individualidade não é inconsciente? “Em todos os casos em que se observa identidade com a persona e em que, portanto, a alma é inconsciente, a imagem da alma aparece transferida para uma pessoa real” (JUNG, 1981a) p519. Nos casos em que o Ego identifica-se com a persona não há processos inconscientes em ação? Evidentemente que não é o caso. Mas será que inconsciente é apenas o que aparece como efeito de projeção ou pode ser entendido também como o próprio processo de identificação que levaria a ilusão de identidade? Identidade está longe de ser um termo problemático? Evidentemente que não! Jung critica, no método da imaginação ativa, a submissão ao princípio de identidade quando diz que ele não implica numa “redução à primeira figura silogística  ” (JUNG, 1984) §403

Individualidade remeteria ao processo de individuação?

Individuação fala de realização da personalidade, mas personalidade derivada do grego persona e designa máscara através da qual algo outro, transcendente, se manifesta; implica que sem este “outro”, para além do Ego/Persona, não haveria personalidade individualizada. Individualidade teria sempre algo de consciente e inconsciente ao mesmo tempo. Jung pode estar falando de individualidade ser inconsciente quando a consciência não se dá conta dos paradoxos, de ser ao mesmo tempo um e múltiplos, ser e nada etc?

Jung problematiza a separação estrita entre o individual e universal; “(…) o indivíduo humano, como unidade viva, é composto de fatores puramente universais, é coletivo e de modo algum oposto à coletividade.” (JUNG, 2001) §268.  Ou seja pode-se entender que o universal realiza-se no particular e o particular apresenta uma forma do universal. “A individuação, pelo contrário, tem por meta a cooperação viva de todos os fatores. Mas como os fatores universais sempre se apresentam em forma individual, (…)” (JUNG, 2001) §268.

Á ideia de totalidade (da personalidade) não se poderia assinalar o centro como a consciência; “não se pode assinalar o lugar central para a consciência porque nossa consciência é sempre unilateral. (…) A personalidade em seu todo poderia ser descrita como consciência mais inconsciente.” (JUNG, 1995) §133. “O que vemos do mundo está distante da totalidade, é meramente a superfície; nós não olhamos para dentro da substância do mundo, para dentro daquilo que Kant chamou de “a coisa em si”. (JUNG, 1995) §136. Haveria uma pele de adaptação para o mundo consciente e a “anima é a conclusão da inteira adaptação do homem às coisas desconhecidas ou parcialmente conhecidas.” (JUNG, 1995) §136.

Jung chama de “Self” (Selbst) o fator que transcende à personalidade do Ego, ultrapassando seu aparelho sensório e sua vontade, sem excluí-lo. “Self” pode ser visto como um valor; “a experiência dos mais elevado valores que ultrapassam a própria extensão do indivíduo, isto é experiência do transcendente e do outro” (HILLMAN 1981) p.195. “Self” conjugaria um duplo significado tanto pessoal como transcendente. Para Jung “mesmo as condições mais vis têm um significado mais amplo e não apenas falhas humanas pois apontam fatores coletivos” (HILLMAN 1981) p.195.

Porem Jung alerta que há modos de despojar o si mesmo de sua realidade em benefício de um papel exterior, um significado imaginário, com preponderância do coletivo e correspondente a um ideal social; passando mesmo por dever social e virtude, embora possa significar abuso egoísta. “O egoísta (“salbstisch”) nada tem a ver com o conceito de si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do si-mesmo.” (JUNG, 2001) §267. Individuação é um “processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna “egoísta”, no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser (…)” (JUNG, 2001) §267.

Portanto, em que casos e em que situações o inconsciente está excluído? Se em todos os casos as coisas são sempre conscientes e inconscientes ao mesmo tempo como separar os casos? Se isto aplica-se a todos os casos, e aqui os casos não são apenas pessoas literais, mas todas as pessoas da psique, então todas as situações revestem-se de um caráter metaforicamente “homossexual” e “heterossexual”. Assim sempre se teria um mesmo e um outro sendo que o mesmo não é igual enquanto princípio lógico da identidade e o outro faria sempre parte do Si-mesmo.

Este duplo exerce influência afinal “o afeto tem sua origem no fato de ser impossível uma adaptação consciente ao objeto que representa a imagem da alma.”. (JUNG, 1981a) p.519. A determinação na consciência é sempre finita enquanto que os sentidos na vida e no inconsciente são múltiplos e infinitos, mas ao mesmo tempo em relação com tudo que está determinado.

Retomando-se que o Eu que pensa, quer etc. “se racha e se dissolve como consequência do choque com o inconsciente” (JUNG, 1978) p.60; valem citações de Georges Bataille e Judith Butler, no curso do Prof. Dr. Vladimir Safatle: Erotismo, sexualidade, gênero: identidade, diferença e corporeidade na filosofia do século XX.

O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos (…) Trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é capaz (…) A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento. (BATAILLE, 2013) p.42-43

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco (BATAILLE, 2013) p.55

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos. (BUTLER, 2004) p.25

Seguindo-se estas ideias o erotismo pode ser visto como possibilidade de “dissolução das formas constituídas”, fundar continuidade no interior da descontinuidade dada pelas formas definidas da individualidade. As formas constituídas podem ser entendidas com as configurações de determinados complexos?  Ou, como o complexo afetivo é uma imagem de determinada situação psíquica, esta determinação pode ser de certa forma assombrada de dissolução do choque com o inconsciente. Porém é nesta dissolução que encontra-se a continuidade e integralidade perdida através das funções unilateralizantes de julgamento e de objetificação.