Não leia abaixo: textão apocalíptico

Por Paulo Nunes

Desde a infância tenho tido sonhos apocalípticos intrigantes dos quais ainda me lembro. Talvez trate-se de uma fantasia típica da nossa época, já que a ficção apocalíptica floresceu bastante no cinema dos últimos 30 anos, produzindo em sua maioria blockbusters impressionantes de ação.  Se considerarmos, no entanto, as inúmeras narrativas mitológicas e religiosas ao longo da história, não é difícil concluir que uma certa fascinação pelo fim dos tempos não é algo novo. A importância do simbolismo escatológico na cultura, porém, está longe de ser mera curiosidade mórbida.

A romântica trama de como as nações deixam de lado suas discordâncias político-ideológicas para enfrentar de mãos dadas a ameaça global com o tempo deixou de provocar-me arrepios e, confesso, tornou-se cada vez mais piegas. Devo, no entanto, deixar aqui duas menções honrosas, nas quais o fim da vida na Terra é um plano de fundo para excelentes histórias: o fabuloso “Melancolia” (Lars Von Trier, 2011), belo drama de reflexões existenciais e “Interestelar” (Christopher Nolan, 2014), uma comovente história de amor entre pai e filha, física, astronomia e viagens espaciais.

“Não olhe para cima” fecha o ano de 2021 usando a premissa do desastre planetário para esboçar um tragicômico retrato dos nossos tempos. Nele, a humanidade tem mais dificuldade em acreditar na ameaça iminente de extinção do que em produzir uma defesa contra ela. Escrito e dirigido por Adam McKay e estrelado por Leonardo diCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep e Cate Blanchett, a ficção/comédia dramática da Netflix mostra o que aconteceria nos EUA governado por Janie Orlean (Streep) quando cientistas tentassem alertar o governo sobre um cometa de 9km de diâmetro em rota de colisão com a Terra.

A princípio, a presidente dos EUA acredita que a catástrofe é apenas mais uma das corriqueiras “reuniões do fim do mundo” que resultou em alarme falso. Confrontados com a probabilidade de suas estimativas estarem equivocadas, os cientistas, já tendo refeito seus cálculos inúmeras vezes e consultado colegas no mundo inteiro para validar o achado, dizem que sua precisão  supera os 98%. Contudo, a presidente dá um peso desproporcional à opinião do estúpido Chefe de Gabinete (que, por acaso, é seu filho), questiona a confiabilidade da universidade cursada pelos astrônomos e diz que consultará “seus próprios especialistas” – obviamente, aqueles que dirão o que ela deseja escutar. O governo dos EUA, temerariamente, está repleto de negacionistas e pseudo-especialistas (o roteiro foi escrito durante o governo Trump, porém, antes da pandemia do COVID 19), e uma das ironias incluídas na trama reside no fato de que a chefe da NASA não é uma astrônoma ou física, mas uma anestesiologista.

Inconformados, os cientistas desobedecem a ordem presidencial de manter o assunto em segredo e vão a um programa de TV para anunciarem sua descoberta. Porém, lá encontram ouvidos não menos moucos: os apresentadores tentam transformar a notícia em algo bem-humorado e trivial, adequado ao tipo de jornal matutino onde estão. A completa falta de sensibilidade diante do trágico provoca uma explosão de raiva em Kate Dibiasky (Lawrence), a cientista que dá nome ao cometa e que parece ser a única pessoa no recinto cujo sentimento corresponde à gravidade da questão. Até seu mentor, o Dr. Mindy (diCaprio), é posteriormente contaminado pelo sucesso de sua aparição na TV e por algum tempo permite-se deslumbrar pelo reconhecimento midiático/social e pelo relacionamento extra-conjugal com a âncora da TV interpretada por Cate Blanchett.

Apesar das inquietantes similaridades com as desastrosas atuações de governos ultradireitistas no combate à pandemia do coronavírus, ainda espero que o roteiro de McKay possa ser tomado como uma caricatura didática da atualidade. No mundo atual, dificilmente a população, a mídia e as instituições governamentais estariam em uníssona passividade diante de um assunto indubitavelmente tão grave. Enxergo no roteiro, no entanto, duas questões pertinentes que merecem reflexão. A primeira e mais imediata é a cultura do entretenimento rápido e instantâneo das redes sociais como algo que anestesia a população e a torna insensível diante do trágico, do inaceitável.

A massificação das reações emocionais conseguida com os infames algoritmos das redes sociais, alienando sob o pretexto de conectar, é representada pelo CEO da fictícia Bash, Peter Isherwell. Paródia visual do Tim Cook (CEO da Apple), ele parece ter sido inspirado tanto no Steve Jobs (finado fundador da Apple) como no Elon Musk (CEO da Tesla) e no Mark Zuckerberg (CEO da META, antiga Facebook). Idolatrado pelos usuários dos seus smartphones, Isherwell exibe sempre que aparece na tela uma desconcertante incapacidade de expressar empatia. O controle da Bash sobre seus usuários é tamanho que ela é capaz de detectar suas emoções tristes e entregar-lhe conteúdos alegres em resposta, ou comprar automaticamente a nova canção de um artista para aumentar rapidamente sua popularidade. Isherwell é a personificação cinematográfica da crescente e perigosa influência das grandes empresas de tecnologia sobre os governos e usuários dos seus produtos em todo o mundo: assim como a Apple, mantém uma legião de fãs fiéis à marca capazes de comprar qualquer coisa que estampe seu logo; tal como Google e META, invade a privacidade dos usuários sem qualquer escrúpulo; como Elon Musk, cultiva em torno de si uma aura de gênio salvador da humanidade e colonizador de outros planetas, enquanto seus propósitos pessoais são completamente desconhecidos. Se você ainda não assistiu, recomendo fortemente “O dilema das redes” e “Privacidade hackeada” (2020 e 2019, ambos na Netflix): os documentários desvelam o modo escuso como essas empresas coletam os dados sobre tudo o que fazemos na internet e usam estas informações para influenciar nossos atos. Usando psicologia de massas, eles apelam aos desejos mais profundos e medos mais arraigados do indivíduo: desejo e medo, os mais fiéis preditores de comportamento, usados para influenciar desde aquilo que você consome até o candidato em que vota.

A segunda questão é mais profunda e, talvez, insolúvel. Ela é enunciada desesperadamente em rede nacional quando o astrônomo Randall Mindy, típico intelectual introvertido, mostra-se recém-desiludido de suas breves núpcias com a popularidade: “quando foi que perdemos a capacidade comunicar-nos com o outro?”

Em seu best-seller “Sapiens – uma breve história da humanidade”, o historiador israelense Yuval Noah Harari sugere que a capacidade de elaborar um conhecimento que obtenha a concordância de todos os membros da espécie estaria estreitamente relacionada com o tamanho avantajado do cérebro do Homo sapiens e fora essencial para que este, organizado em maiores números, pudesse vencer predadores naturais e hominídeos mais poderosos (como o “Homem de Neandertal”), tornando-se a espécie dominante no planeta (HARARI, 2015). O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung demonstra uma predileção pelas palavras do monge do século V, São Vicente de Lérins, para definir o mito como “aquilo que é acreditado por toda parte, sempre e por todos” (JUNG, 2011).

Para Jung, longe de limitar-se às narrativas fantásticas das divindades greco-romanas ou dos livros sagrados das religiões, o mito é uma trama que enreda todas as atividades humanas: “Portanto, aquele que pensa viver sem mito ou fora dele constitui uma exceção. Ele é, na verdade um erradicado, que não tem contato verdadeiro nem com o passado, a vida dos ancestrais […], nem com a sociedade humana do presente” (JUNG, 2011). Algumas décadas depois e de forma mais didática, explica Harari:

“A maioria dos milionários acredita sinceramente na existência do dinheiro e das empresas de responsabilidade limitada. A maioria dos ativistas dos direitos humanos acredita sinceramente na existência de direitos humanos. Ninguém estava mentindo quando, em 2011, a ONU exigiu que o governo líbio respeitasse os direitos humanos de seus cidadãos, embora a ONU, a Líbia e os direitos humanos sejam todos produtos de nossa fértil imaginação.

Desde a Revolução Cognitiva, os sapiens vivem, portanto, em uma realidade dual. Por um lado, a realidade objetiva dos rios, das árvores e dos leões; por outro, a realidade imaginada de deuses, nações e corporações. Com o passar do tempo, a realidade imaginada se tornou ainda mais poderosa, de modo que hoje a própria sobrevivência de rios, árvores e leões depende da graça de entidades imaginadas, tais como deuses, nações e corporações” (HARARI, 2015).

A capacidade de criar uma interpretação da realidade que seja compartilhada por todos, de criar regras e instituições obedecidas em toda a parte é o que mantém em delicado equilíbrio a população de quase 8 bilhões de humanos no planeta. Segundo o historiador e antropólogo francês René Girard (1990), todo pacto social é fundado sobre o sacrifício de liberdades individuais para que dessa forma se evite a emergência da violência disseminada que em pouco tempo nos transformaria de volta em animais selvagens.

A universalidade do tabu do incesto e dos mitos do dilúvio são um indicativo de como um hipotético “evento fundador” (nas palavras de Girard) está intimamente ligado a um momento crítico na pré-história onde a espécie esteve ameaçada de extinção, interpretada como resposta dos deuses à transgressão humana. Após a traumática punição, o comportamento que é identificado como origem da ofensa torna-se tabu, e a concordância geral com propósito de evitar desobediências subsequentes inaugura entre os remanescentes uma nova ordem social, um novo mito que todos devem obedecer se quiserem sobreviver. No seu estudo sobre a origem do sagrado e sua estreita ligação com a sexualidade e a violência irrestritas, Girard (1990) mostra como a divindade primitiva é invariavelmente a personificação da força capaz de destruir a espécie, que deve ser dissuadida de sua fúria punitiva através da renúncia às liberdades do animal. A conscientização e o terror diante da possibilidade da aniquilação é o que transforma o macaco em homem civilizado.

As evidências históricas desta transição estão nos cumprimentos mais básicos, o princípio da comunicação entre dois humanos: o aceno e o aperto de mãos teriam surgido para mostrar que ambos os indivíduos estavam desarmados e, assim, sem intenção de cometer violência. Uma versão ligeiramente diferente é curvar a cabeça em direção ao outro, que no Japão representou inicialmente a boa fé de colocar-se ao alcance de um golpe fatal de espada. Aproximar-se do outro com bons modos um dia foi o mesmo que declarar: “não vou te matar, então, por favor, não me mate”. Talvez a tenhamos esquecido, mas a besta capaz de violência intempestiva ainda se encontra debaixo do fino verniz de civilidade em cada um de nós.

À medida que as sociedades distanciam-se da lembrança do caos que reinou na ausência da civilização e conseguem prosperar em larga escala através de uma cooperação sem precedentes, ganham domínio sobre as forças destruidoras da natureza e, na ausência da violência divina, torna-se possível questionar a existência dos deuses e a validade das “obsoletas” regras morais. O medo dos deuses cria o homem civilizado que abomina a barbárie; o homem civilizado traz a prosperidade sustentada que transforma o temor aos deuses, a única coisa que os separava da barbárie, em superstição. No ato seguinte, o que segue assemelha-se à história admonitória da Torre de Babel: sem um mito unificador – sem falar a mesma língua – a confusão reina e traz consigo o colapso.

Este é provavelmente o lugar onde nos encontramos, o mundo da “pós-verdade” onde só existem “narrativas”. Insatisfeitos com os benefícios de viver em sociedade em troca da perda progressiva da liberdade individual, os chamados “liberais anarcocapitalistas” clamam por um mundo sem Estado. Para os ateus, a religião é a fonte de todo o mal a ser aniquilado. Para os conservadores protestantes, a ciência e os movimentos que buscam solução das injustiças sociais e o fim dos preconceitos de raça e gênero estão destruindo todos os princípios morais que deveriam nortear a humanidade. Para os ambientalistas, está claro que a civilização está destruindo a si própria ao construir uma crise ambiental inevitável. Para os da direita alternativa, vivemos uma “ditadura alarmista do politicamente correto”, ou do “marxismo cultural”. Não conseguimos concordar sequer com o formato que deve ter a Terra…

“Estamos perdendo a capacidade de comunicar-nos!”, grita o astrônomo em desespero diante dos âncoras da TV, que riem como patetas enquanto o cometa Dibiasky desce furiosamente de encontro à Terra. Quando ele enfim torna-se visível a olho nu nos céus estadunidenses, um curioso movimento ganha força: “não olhe para cima!” Enfim, descobrimos a causa do fascínio causado pelo “dia do juízo final” na psique humana. Seja como lembrança de tempos piores que nos persuada ao esforço de continuar convivendo pacificamente com nossos semelhantes, seja como uma inquietante intuição da catástrofe que se avizinha, o fim dos tempos não deveria ter deixado jamais de ser nosso melhor conselheiro.

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Paulo Nunes – Médico graduado na UFBA em 2005. Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA. Atendimentos em Salvador. Contato: (71) 98355-6564 (Telefone e Whatsapp). Instagram.com/jungexplica

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REFERÊNCIAS

GIRARD, R. A violência e o sagrado. 1 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

HARARI, Y. N. Sapiens: Uma breve História da humanidade. São Paulo: L&PM Editores, 2015.

JUNG, C. G. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.