Aspectos tóxicos da masculinidade e o suicídio

Setembro Amarelo. É o mês de conscientização sobre a prevenção do suicídio, assim mesmo define o site da campanha. A história que inspirou essa campanha começou nos EUA, no ano de 1994 quando um jovem de 17 anos tirou a própria vida dirigindo seu Mustang amarelo, um carro que ele mesmo havia reformado. A história é sempre importante, pois ela nos ensina, principalmente nos detalhes. O que levaria um jovem rapaz de 17 anos a tirar a própria vida?

Kovács (1992) afirma que o suicídio é um fenômeno complexo, com causas multifatoriais e que sempre tem uma história de sofrimento humano, muitas vezes não ouvido nem acolhido. Aqui é proposto pensar sobre a influência de aspectos tóxicos da masculinidade como fatores no suicídio do homem.

A sociedade brasileira é patriarcal, centrada no homem branco cisgênero (que se identifica com o gênero biológico com o qual foi designado ao nascer), heterossexual e geralmente cristão. Isso significa dizer que os homens têm diversos privilégios pelo fato de nascerem homens e assim se identificarem ao longo de suas vidas. Privilégios socioeconômicos como os salários maiores que o das mulheres; privilégios socioculturais, como a possibilidade de transitar livremente, sem sofrer assédio, limitações parentais ou religiosas; privilégios sócio-educacionais, ao serem sempre validados e terem suas opiniões consideradas como fundamentais. Tais privilégios as mulheres não tem. Acontece que a construção do masculino hoje é distorcida e carrega aspectos tóxicos.

A masculinidade nega o feminino. O homem não pode chorar, aprende a não ser sensível, aprende que suas emoções devem ser implodidas, aprende que abraçar, beijar, ou ter qualquer tipo de contato mais afetivo com outro homem o descaracteriza como masculino. O homem acaba dissociado de suas emoções, de sua sensibilidade e desautorizado de falar sobre seus sofrimentos, pois a competitividade e a destruição dos mais fracos impera no universo masculino. Há uma excessiva valorização da racionalidade, da lógica, da objetividade, da ambição, de um predatismo em nossa sociedade; todas essas características sendo associadas ao masculino.

Na Psicologia Analítica dá-se a esse desenvolvimento excessivo o nome de unilateralidade; isso significa que se desenvolve apenas para um único lado, por uma única via, e se ignora que o humano, o homem incluso, é composto de multiplicidades e diversidades. O desenvolvimento unilateral sempre leva a um adoecimento: psíquico, mas também social e cultural, quando falamos de algo tão amplo como a masculinidade.

Uma figura mitológica dessa masculinidade dominadora é demonstrada em uma das diversas narrativas do deus Shiva; se contava que no alto dos Himalaias, a sua morada, sua presença masculina era tão poderosa que, qualquer homem que entrasse nela imediatamente se transformava em mulher. É possível também notar que além de dominadora, a masculinidade aqui também aniquila o feminino. Essa figura mitológica, tão representada hoje em nossa sociedade na construção do masculino é uma figura arquetípica que Jung conceituou como arquétipo. Ao definir arquétipos Jung (1981/2017) afirma que se tratam de padrões coletivos de caráter mítico e por isso não pertencentes a uma psique individual, mas a toda coletividade humana. O arquétipo masculino é o Animus, a personificação da natureza masculina no inconsciente feminino, e, por isso mesmo, uma figura de identificação na construção identitária dos homens.

O Animus, como apresentado, é o que Hillman (2010) chama de “imagem”: é algo que se personifica, que é forma, que é criação da própria psique, que tem vida e energia própria; que fala e tem sentido em si mesmo; já que como diria Jung “a psique é imagem”. Entretanto, pode-se observar que, a forma como a masculinidade é construída e vivida ocorre algo que Hillman (2010) chama de literalizar: o Animus perdeu a sua multiplicidade e criatividade enquanto imagem e se tornou uma figura rígida, conceitual e definida, e por isso mesmo aprisionado e aprisionador. Aqui observa-se a questão do nominalismo, da conceituação da vida, ao invés da vivência e da experiência da diversidade que a imagem traz. Quando se literaliza, se perde a imagem, o fantástico, o simbólico.

O que isso significa para os homens? Será que todos conseguem sustentar o peso de tantas cobranças? Não conseguem. A dissociação das emoções, o desenvolvimento unilateral que nega o feminino, a literalização que empobrece a existência e o mutismo sobre seus sofrimentos conduz o homem a um estágio de violência, destruição, solidão, culpa; tais características não ocorrem só contra outros homens e contra mulheres. O homem é violento consigo, é autodestrutivo, se isola, carrega uma culpa silenciosa. Esse conjunto de fatores pode e deve ser considerado nas análises sobre o suicídio. Esses aspectos tóxicos da masculinidade são fatores que influenciam o suicídio dos homens.

É preciso reinventar, rever, reimaginar a masculinidade, ou corre-se o risco de que os feminicídios aumentem, mas também os suicídios dos homens que as matam, ou dos que não sustentam a própria existência nestes moldes.

REFERÊNCIAS18

HILLMAN, J. Re-vendo a psicologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

JUNG, C. G. Os fundamentos da Psicologia Analítica. Manuais Acadêmicos. 1ª ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

João Gabriel Suzart Coutinho é Psicólogo, Pós-graduado em Psicoterapia Analítica pelo IJBA/BAHIANA; é psicoterapeuta atendendo em consultório particular, é servidor público municipal, trabalhando com população em situação de rua pelo Consultório na Rua e é preceptor do curso de Psicologia da Faculdade UNIME Salvador. Contato: jgsuzart@gmail.com;