Alma Imoral

Transgredir ou obedecer; vestir-se com as diversas roupas da “moral” ou se despir e mostrar nossa nudez “imoral” são as escolhas que fazem a diferença entre evoluir ou ficar parado. Mas em que contexto essas ideias se aplicam? Nossa consciência é uma função que nos faz viver uma mesma realidade de forma dual: corpo e psique. O corpo traz sua dimensão do desejo e das sensações, enquanto a psique (alma) atende à orientação de nossas imagens internas. Muitas vezes essas imagens já vêm como símbolos empacotados, em papel de presente, para se poder atender às expectativas da família ou da sociedade. Quando isso acontece, deixamos de lado nossa autenticidade até que possamos “trair” e ter nossos próprios símbolos. Essas foram as ideias aprendidas com o livro “Alma Imoral” escrito pelo rabino Nilton Bonder.

            A metáfora do paraíso é utilizada para mostrar que o homem está condenado a evoluir e, portanto, a transgredir. Adão, ao trair, se percebeu desnudo. Essa condição de estar despido é daquele que se vê assim e não do outro que o observa. Vestimos muitas roupas, atendendo à ideia do “animal moral” até aprendermos a nos despir para viver a “alma imoral”. Esse nu não é o nu dos deuses que são perfeitos, mas o nu humano preocupado com suas imperfeições. Essas roupas são as “Personas”, um conceito junguiano que traduz como imaginamos a impressão que vamos causar em quem nos observa e não o modo como nós nos sentimos. A sociedade e a família nos mostra a roupa ideal para nos vestirmos e, assim, procuramos ajustar nossas “Personas” para atender a esses desejos.

            O homem orientado por seus instintos produz, a partir deles, os seus mitos e faz nascer a moral (costumes) ou seu modo de ser (ética). Com a moral, colocam-se defensivos como um réptil a defender o seu território. Seguir o caminho da alma imoral é respeitar o seu modo de ser e participar da vida de forma honesta consigo mesmo sem o excesso de falsas roupas. Satã, como expressão do nosso “universo ficcional”, foi utilizado como um instrumento do medo para tirar das pessoas o seu processo criativo de vida. Essa alma, por meio das doenças, grita para que o indivíduo a escute e evolua levando esse progresso para além de sua geração.

            Os instintos e o imoral parecem se confundir, no entanto, a moral é quem deixa ao indivíduo negar sua natureza que se torna a arena de luta entre o homem e o seu Deus. Evoluir como ser humano é encontrar-se e atingir os potenciais com os quais nasceu. Esse é o chamado da vida.

            Quando evoluímos ficamos à frente de muitos de nós. Poderemos nos sentir solitários, mas é passageiro. Logo encontraremos o outro que também cresceu para dar início à construção de novas relações com quem também saiu da acomodação. Isso é diferente daqueles que se sentem só por estarem parados na vida e se deprimem quando todos já terão se deslocado. Esta situação, muitas vezes, leva um casamento ao seu fim.

            Em um casamento, a transformação de um cônjuge faz mudanças na relação e, em consequência, o outro tem o seu direito de acomodação colocado como um incômodo que o empurra para evoluir ou separar-se. Se a relação enriquece afetivamente, um não precisa enganar o outro. No entanto, quando a relação está doente e as medidas para curar não obtêm êxito, e ainda assim vive a hipocrisia de enganar a si mesmo, torna-se um sacrifício induzido pela moral. A consequência é deixar de atender ao chamado da vida. Nesse caso, trair a si mesmo e é mais grave do que trair o outro.

            Sem honestidade numa relação, a consequência é a insatisfação. Em um casamento há um contrato para gerir conflitos cuja tensão é própria do ser humano: trair ou manter a tradição. O autor cita: “O homem que sublima sua paixão, sua rebeldia, suportando um casamento que se tornou unicamente tradição, é um traidor“. Trair vem de entregar. Do seu particípio traditus nasceu tanto tradutor quanto tradição. Passar algo de uma geração a outra é tradição e sem trair é traduzir sem criatividade e manter os mesmos símbolos sem respeito à individualidade.

            A vida é o corpo com algo além da matéria. A esse algo chamamos de alma. Ela aspira realizar-se e, com isso, impulsionar a evolução. A alma de um povo pode se expressar por meio de um ritual que envolve enorme mobilização emocional, como o futebol numa Copa do Mundo. Na vida, o certo, o bom e o errado estão também em disputa. No jogo, se o juiz marcou a falta injustamente, por exemplo, os computadores mostram a verdade e as crianças junto aos seus pais aprendem o valor bom de o juiz ter errado para lhes favorecer; ou o aprendizado ético de perceber o errado da falsidade daquela vitória e aprender a perder e lidar com as frustrações de não ter os seus desejos atendidos.

            Ali, em frente ao gol, emoções serão exercitadas. É a sorte, o azar, a vitória, a derrota, o justo, o injusto, tudo vivido simbolicamente para quando encontrarmos a situação no espaço da realidade em que se vive a vida, já ter aprendido a conviver com o que a vida traz para todos. Em nossa trajetória, nos deparamos com uma encruzilhada. Escolhe-se um caminho. Esse caminho pode ser curto, simples, mas com o custo elevado de uma vida sem sentido; ou um caminho longo, com prêmio final de encontrar um sentido para a existência.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br