A parte que falta

“Faltava-lhe uma parte. E ele não era feliz. Com essas frases e o desenho de um círculo faltando um pedaço triangular, Shel Silverstein, um ilustrador norte-americano, começou sua obra infantil, “A parte que falta”. Escrita em 1976, chegou ao Brasil em 2013, depois do falecimento de seu autor em 1999. Essa obra habitava nossas livrarias de forma quieta até que, cinco anos depois, a youtuber Jout-Jout a acordou e a fez espalhar-se como Best-Seller. Youtuber é uma profissão dos tempos atuais que faz parte do chamado Digital Influencer, termo criado para designar aqueles formadores de opiniões que influenciam pessoas pelas redes sociais.

O círculo incompleto rolava pela estrada da vida e cantava alegremente que buscava a parte que lhe faltava. Enfrentava todo tipo de adversidades, mas em meio a tudo isso encontrava prazer em dialogar com uma minhoca, experimentar o perfume de uma flor, ultrapassar e ser ultrapassado por um besouro, além de experimentar um momento especial de quando sentia pousar em si uma borboleta.

No caminho, encontrava partes que não se encaixavam nem na forma nem no tamanho. Um dia encontrou a parte ideal. No diálogo entre eles, a parte admitiu que poderia ser parte de si mesma e, ao mesmo tempo, parte de alguém. Tentaram e o encaixe foi perfeito. E, por sentir-se completo, rolou de tal forma que nem percebia a existência da vida a sua volta nem mais podia cantarolar de tão sufocado que ficara. Com cuidado, depositou a parte no chão e voltou a rolar incompleto. Estava agora feliz e cantava anunciando que buscava a parte que lhe faltava.

Essa é uma história que serve de moldura para caberem os temas humanos sobre a incompletude. É um aspecto do homem “genérico”, constituído do que chamamos de “temas arquetípicos”. Os arquétipos estão para a nossa psique assim como as células biológicas estão para o nosso corpo físico. Enquanto as células guardam o potencial para gerar tecidos orgânicos, os arquétipos contêm em si energias que, quando ativadas, geraram os temas arquetípicos responsáveis pelo nosso modo de viver e nos comportarmos.

Obras de autoajuda descrevem os temas arquetípicos na forma experimentada pelo autor. Porém, consideramos que não há dois homens iguais, por isso é decepcionante quando se tenta colocar em prática sem respeitar a singularidade de cada ser. Nos livros de autoajuda, o individual não importa perante o genérico, mas, nos processos psicoterapêuticos, o genérico não importa perante o individual.

Na obra de Silverstein, o tema vem despojado de material pessoal e isso permite tocar a todos na sua singularidade para maravilhar ao fazer contato com as imagens do seu universo interior. Cada leitor tem o direito de colorir com as emoções decorrentes das suas próprias experiências de vida. É como o esqueleto do homem genérico, sem o recheio pessoal do autor.

A minhoca, com a qual o ser incompleto dialoga, é tão simples no seu viver quanto sem importância para o homem que não compreende o seu papel; ao tempo que é tão importante para os pescadores e aqueles que valorizam o equilíbrio ecológico. As minhocas são em si seres andróginos, possuem os dois órgãos: masculino e feminino. Mesmo assim, necessitam de um outro para se reproduzirem.

Para conhecer os temas arquetípicos que formam o homem genérico, os estudiosos analisam o universo mitológico que habitamos. É na arte, sendo a literatura parte dela, que compreenderemos nossa forma de traduzir as inquietações existenciais.

Em “O banquete”, de Platão, encontramos o “Mito do Andrógino”, o qual explica a origem do homem. Os Andróginos eram perfeitos, pois continham em si os dois sexos. Ser perfeito é uma condição que ameaça os deuses. Então, Zeus, o deus dos deuses, tomou sua espada e os seccionou, separando-os em bandas, e deu-lhes um desejo com os anseios que nunca seriam satisfeitos.

Esse mito mostra que cada homem, em sua nostalgia arcaica da parte que lhe falta, está condenado por toda a sua existência a viver em busca da plenitude que um dia se perdeu. Daí a palavra sexus, do latim secare, cuja tradução é dividir ou separar. Enquanto isso, desejamos a perfeição da completude. Porém, o desejo é mobilizado pela parte que falta em mim. O romancista irlandês Bernard Shaw escreveu: “há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos, a segunda é quando são.”.

A epifania é vivida com a borboleta. Trata-se de um ser de vida breve, tanto quanto são tais momentos. Também sabe a diferença entre ser lagarta (vida imatura) e borboleta (vida adulta). É o efêmero da beleza terrena. Os antigos gregos relacionavam-na com a alma (Psyche). Esse é o momento em que nos envolvemos com a nossa alma e dialogamos com ela. O verdadeiro ato religioso em reconhecer-se único por conseguir perceber unidade em meio às mudanças contínuas.

É na busca da completude que conhecemos coisas simples que mostram a beleza do existir. O que é o sexo diante da amizade que prova um amor que preserva a distância ideal entre os amantes? Afinal, poderemos amar uma xícara que está sem asa, quando o desejado é ela completa, desde que o seu conteúdo não nos maltrate queimando nossos dedos.

Ser completo é ultrapassar nosso próprio limite humano e não deixar espaço para viver. A busca do novo, no caminho para o infinito, é a maneira de reconhecer nossa individualidade e destacar-nos do homem coletivo que lança seus padrões no córrego que une a todos em massa. A falta que faz é a voltagem necessária para fluir a energia que mantém a vida.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br