A busca do inconsciente pela harmonia e a compensação entre o falado e o não falado

Um dos grandes legados teóricos que C. G. Jung nos deixou foi a descoberta de que no inconsciente não ficam armazenadas apenas as experiências reprimidas, mas também toda a história da humanidade. Didaticamente, podemos afirmar que as experiências, desde a nossa concepção, ficam registradas no que ele nomeou como inconsciente pessoal e as experiências coletivas, ancestrais e universais, contemplando o surgimento da vida senciente, no inconsciente coletivo.

Jung também entendeu que as representações do inconsciente nos chegam através dos sonhos e com elas existe a intenção regulatória entre a consciência egóica e o inconsciente. Jung chamou esta auto regulação de compensação e nos oferece a seguinte explicação:

Todos os processos excessivos (unilateral/intenso) desencadeiam imediata e obrigatoriamente suas compensações. Sem estas não haveria nem metabolismos, nem psiques normais. Podemos afirmar que a teoria das compensações é a regra básica, neste sentido, do comportamento psíquico em geral. O que falta de um lado, cria um excesso do outro. Da mesma forma, a relação entre o consciente e o inconsciente também é compensatória. (Jung, 2011a p. 36)

Podemos compreender que essa afirmação está na base fundante da teoria junguiana. A partir dela podemos notar a questão sobre os opostos, já que inconsciente e consciência são pares de opostos. Mas para que essa reflexão não fique tão extensa vou discorrer apenas a respeito da compensação, pois através dela podemos analisar melhor os fatos da atualidade. A grande pergunta que podemos fazer nos dias de hoje não precisa estar baseada em quais motivações alguém teria em determinadas ações e/ou atitudes, mas o que está sendo compensando, por que e para que?

Por exemplo, o discurso de ódio e racismo que uma internauta direcionou à filha adotiva e negra do casal branco e famoso (Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank), que gerou inúmeras manifestações na rede, nos possibilita a seguinte ampliação: O que estava sendo compensado tanto na protagonista quanto nos manifestantes ou defensores passionais? Antes de prosseguirmos nesta analise vale lembrar que segundo uma pesquisa do IBGE de 2008, mais de 60% das famílias declaram que a origem familiar ou de seus antepassados são da raça negra. Será que essa mulher com tal discurso racista, no fundo não se vê negra também? Se na sua consciência existe a atitude contra a criança negra valorizada e amada, em seu inconsciente pode existir uma negra renegada, que invejosamente gostaria de ser reconhecida e tratada como a menina por ela criticada, afinal de contas, Jung já afirmava “que todas as qualidades más, cuja presença nas outras pessoas nos irrita, pertencem também a nós”. (Jung, 2011b p. 225)

As atitudes homofóbicas também podem ser analisadas à luz desta teoria. Será que não se trata da mesma situação onde a fobia, que produz unilateralismo, está denunciando o mecanismo de defesa diante da negação com a identificação e atração inconsciente com a homossexualidade? Neste caso, toda raiva contra a homossexualidade seria a compensação para a existência de conteúdos similares, porém inconscientes. De forma mais direta, aquele que busca a agressão se encontra plenamente identificado com o mesmo conteúdo inconsciente.

As questões políticas não são diferentes e podem ser analisadas através da mesma ótica da compensação entre consciente e inconsciente. Jung ao escrever a introdução do livro psicologia do inconsciente explica que não poderia deixar essa obra publicada apenas em uma revista cientifica, já que o mundo passava por uma guerra (1º guerra mundial – 1912) e explica que:

Nada mais apropriado do que os processos psicológicos que acompanham a guerra atual – notadamente a anarquização inacreditável dos critérios em geral, as difamações recíprocas, os surtos imprevisíveis de vandalismo e destruição, a maré indizível de mentiras e a incapacidade do homem de deter o demônio sanguinário para obrigar o homem que pensa a encarar o problema do inconsciente caótico e agitado, debaixo do mundo ordenado da consciência. (Jung, 2012)

Ou seja, por trás dos inflamados discursos moralistas da atualidade, com aparente grau de consciência, podemos desconfiar de que algo não está tão bem no inconsciente. O caos que toma conta das quatro direções do mundo deveria servir de alerta para todos, mas não é o que vemos. Cada vez mais há uma polarização da população, a exemplo do que acontece no Brasil. Se cada brasileiro pudesse compreender essa teoria, poderia ficar claro que não existe alguém de extrema esquerda que não tenha dentro de si uma identificação com a extrema direita. Se fosse possível sair desta identificação unilateral uma nova resposta poderia surgir, algo que iria contemplar soluções criativas e complementares que atenderia não apenas um lado, e sim todos os lados, contemplando pobres, ricos, incluídos e excluídos, cristãos e evangélicos, ou seja, atenderia o ser humano integral. Porque a união dos pares de opostos estimula a função transcendente e o surgimento do homem integral.

A mudança que desejamos deve partir do nosso trabalho de autoconhecimento, da mesma forma que Jung nos ensina que “somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo.” (Jung, 2012)

É notório percebemos na atualidade a cultura que incentiva o externo, o racional e concreto. A subjetividade é apenas tocada no âmbito da consciência. A meta é a felicidade a todo custo. A maneira unilateral da atualidade deixa cada vez menos espaço para o inconsciente atuar livremente e perigosamente. Somos bombardeamos com treinamentos e manuais para o sucesso, com a confiança de que tudo posso conquistar se assim desejar.

Neste contexto, somente a consciência tem espaço, não existe qualquer permissão para o desconhecido que habita em nós. Aquilo que não se enquadra no ideal, no belo, rico e produtivo não tem espaço para se manifestar. Este é o padrão unilateral que reina na contemporaneidade. Por isso talvez o que mais importa hoje é manter a persona de sucesso, apesar da falta de profundidade da alma, algo que já era denunciado por psicoterapeuta junguiano Robert A. Johnson em seu trabalho, Inner Work, o autor diz que:

O desastre que assola o mundo moderno é a completa separação da mente consciente das suas raízes no inconsciente. Todas as formas de interação com o inconsciente que alimentaram nossos ancestrais – sonho, visão, ritual e experiência religiosa – estão em grande parte perdidas para nós menosprezadas pela mente moderna como primitivas ou supersticiosas. Assim, cheios de orgulho e arrogância, com profunda crença em nossa razão inabalável, cortamos as nossas origens no inconsciente e nos desligamos da parte mais profunda de nós mesmos. (Johnson, 1989 p. 18)

Diante dos problemas da atualidade o que mais deveria nos preocupar hoje é a posição unilateral a qual estamos submetidos no Brasil e no mundo. Essa falta de equilíbrio denuncia o domínio de apenas um lado como o certo, apenas uma atitude ou opinião, tudo evidenciado principalmente pelos discursos conservadores, assim como também dos movimentos de gênero, onde cada um defende seu ponto de vista como único e verdadeiro. Com isso, fica claro um desequilíbrio entre as partes, ou de forma mais clara, entre consciência e inconsciente.

E é neste desequilíbrio que podemos nos perguntar, o que está sendo compensado nestas atitudes? Em geral, um lado está compensando o outro, e retomando o começo do texto quando escrevi a respeito do inconsciente e da consciência. Podemos dizer que o inconsciente está compensando uma posição unilateral do ego. Todo esse fator compensatório entre essas partes da psique deveria ser fator de preocupação, afinal, cada dia que passa o inconsciente fica ainda mais sem espaço, sem lugar para se realizar. Assim como a natureza cobra a humanidade pelo desequilíbrio no planeta, o inconsciente também irá cobrar o desequilíbrio causado pela unilateralidade do ego na consciência.

Não podemos esquecer que a meta natural do inconsciente é realizar a si mesmo, portanto, sempre seremos cobrados no percurso do processo de autodesenvolvimento. Se existe posições extremadas espalhadas por toda a humanidade a busca pela compensação entre os opostos complementares também existe. E enquanto não for possível para cada um de nós entender o que é compensando nas posições que assumimos, sem abrir espaço para o outro e o seu oposto, cedo ou tarde seremos forçados a buscar a síntese para a união destes pares de opostos, que deveriam se complementar, mas encontram-se em desunião.

Referencias:

Johnson, Robert A. 1989.Inner Work – A Chave do Reino Interior. São Paulo: Mercuryo, 1989.

Jung, Carl Gustav. 2011b.A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2011b. Vol. 8/2.

-. 2011a.Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. Petrópolis: Vozes, 2011a. Vol. 16/2.

-. 2012.Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012. Vol. 7/1.

Daniel Gomes. Psicoterapeuta junguiano –  Membro analista em formação pelo IJEP

e-mail:daniel@conhecendojung.com.br – www.conhecendojung.com.br