Por Márcio de Abreu
Qualquer pessoa que já tenha tentado traduzir em palavras a intensidade de um orgasmo ou a profundidade de um arrebatamento estético sabe que a linguagem parece sempre ficar aquém do vivido. De fato, há experiências que desafiam os limites do discurso, permanecendo à margem do narrável. Esse limiar entre o inefável e o inteligível tem se tornado um ponto de interesse crescente na Psicologia Cultural, visto que seu principal objeto de estudo consiste justamente na dimensão cognitivo-afetiva da experiência humana e nos processos simbólicos que a moldam.
Para Jaan Valsiner – um dos seus teóricos mais prolíficos -, os métodos narrativos são cegos para aspectos da experiência que não são plenamente capturados por palavras. Isso se aplica, por exemplo, a estados transitórios de curta duração e subjetividade intensificada, nos quais o emocional se funde com o simbólico. A solução, segundo o próprio Valsiner, demanda um alargamento do campo de investigação da Psicologia Cultural, de modo a incorporar formas intermediárias e transitórias de produção de significado. Certamente, isso implica voltar-se não apenas para os relatos que as pessoas produzem sobre suas experiências, mas também para expressões corporais, gestos, mudanças na prosódia e outros indicadores dinâmicos de significados emergentes. A proposta é sedutora: em vez de tomarmos a linguagem verbal como único caminho para acessar a experiência, por que não considerar outras vias de mediação simbólica?
Contudo, ao mesmo tempo em que expande o horizonte da Psicologia Cultural, a proposta de Valsiner incorre em um impasse epistemológico. Afinal, sua crítica aos métodos narrativos traz implícita a suposição de que seria possível acessar níveis pré-discursivos da experiência sem transformá-los em algo estruturado e representável. Em outras palavras, ela pressupõe a existência de uma essência da experiência que poderia ser capturada diretamente, quando, na realidade, qualquer tentativa de acesso já implica sua interpretação e tradução em formas comunicáveis. Além disso, se a tese central da crítica ao paradigma narrativo é que há dimensões da experiência que escapam à verbalização, como é possível, então, articulá-las teoricamente sem recorrer a descrições verbais?
Neste ponto, a Psicologia Cultural poderia se beneficiar de um diálogo com a Psicologia Analítica, especialmente por meio de uma analogia com o conceito de arquétipos. Segundo Jung, os arquétipos não podem ser conhecidos em si mesmos, mas apenas inferidos a partir de suas manifestações tangíveis, como imagens, narrativas e padrões de comportamento. Quando expressas, tais manifestações passam a ser atualizadas pela vida “interior” (impressões, pensamentos e sentimentos) e “exterior” (sistemas de normas e valores socialmente determinados) daquele que vive a experiência. Da mesma forma, os estados transitórios da experiência que Valsiner busca investigar não são diretamente acessíveis, mas apenas apreensíveis através de suas expressões mediadas, as quais envolvem tanto sistemas de sentidos pessoais quanto significados coletivamente compartilhados.
Isso sugere que, em vez de buscar escapar da linguagem e do discurso narrativo, o desafio da Psicologia Cultural poderia ser compreender como essas mediações inevitáveis moldam e estruturam a experiência subjetiva. A questão não é tanto se há dimensões da experiência que escapam à verbalização, mas sim como aquilo que escapa pode se manifestar por meio de símbolos, gestos e padrões de ação que, ainda que não sejam estritamente discursivos, estão sempre mediados por formas de significação.
Ainda assim, há uma lacuna teórica nessa proposta, e que a teoria junguiana pode ajudar a preencher. Mais do que oferecer uma alternativa para o dilema levantado por Valsiner, o conceito junguiano de arquétipo pode lançar luz sobre a própria origem desse impasse. Para compreender essa possibilidade, voltemo-nos para alguns mitos de criação.
Na mitologia egípcia, por exemplo, Ptah deu forma à realidade ao pronunciar os nomes dos elementos que estavam em seu coração: à medida que pronunciava seus nomes, tudo que ele pensou se tornava real. No Popol Vuh, o livro sagrado dos maias, os deuses criadores Tepeu e Gucumatz “pensaram” e “disseram” o mundo à existência, dando forma, pelo verbo, aos elementos da natureza. Segundo a mitologia dos Maori, na Nova Zelândia, o deus supremo Io cria o mundo usando palavras de poder para dar forma ao vazio. Na tradição hindu, os Vedas dizem o seguinte sobre Brahman, a força suprema de deus, presente em todas as coisas: “No começo era Brahman; com ele estava Vâk, a Palavra; e a Palavra é Brahman”. Esses mitos sugerem que o ato de nomear e estruturar a fenômenos e experiências por meio da linguagem não é apenas um imperativo cultural, mas pode refletir um padrão psíquico profundo.
Se assumirmos, com Jung, que o surgimento da ciência pode ser entendido como uma expressão da “função religiosa” – ou seja, a necessidade psíquica fundamental de dar sentido à existência e de organizar fenômenos e experiências em sistemas coerentes de explicação —, então a própria necessidade de articular a experiência humana em teorias verbais teria origem no mesmo motivo arquetípico subjacente aos mitos de criação. Por essa perspectiva, talvez nos encontremos diante de um dilema incontornável. Seja no âmbito da ciência ou da mitologia, qualquer comunicação de um fenômeno ou experiência – mesmo quando baseado em linguagens não verbais – está sujeita a reconstruções e ressignificações. Isso nos coloca novamente diante do dilema narrativo: a mediação é inescapável sempre que o simbólico precisa ser articulado intersubjetivamente, e a palavra continua sendo um dos seus principais veículos. Afinal, como se lê no Gênesis: “No princípio, era o verbo” – e, ao que tudo indica, nele permanecemos.
Referências
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Valsiner, J. (2025). Beyond words: cultural psychology on trouble. Paper prepared for the VIII Seminário Internacional de Psicologia Cultural: Cannibalizing Cultural Psychology, Salvador, Ba, April 14-16 2025
Márcio de Abreu – Analista junguiano com especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela The University of Nottingham e em Cultura e Sociedade pela UFBA. Bacharel em História com Habilitação em Patrimônio Cultural pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).