Por Márcio de Abreu
“Tragam-me a cabeça de João Batista em uma bandeja de prata!” – esse foi o pedido feito por Salomé, por insistência de sua mãe, ao rei Herodes Antipas, que ordenou a decapitação do profeta por volta do ano 27 d.C. Segundo o Antigo Testamento, mais de mil anos antes da morte de Batista, a queneia Jael, com uma estaca e um martelo, rachou o crânio de Sísera, comandante das tropas do rei Jabim de Canaã, libertando os israelitas após vinte anos de opressão. Já no texto deuterocanônico O Livro de Judite, a heroína homônima, para salvar seu povo sitiado pelos assírios, seduz o general Holofernes e o decapita com sua própria espada, após ele adormecer embriagado. De acordo com Heródoto – considerado o “pai da história”, embora suas narrativas frequentemente se aproximem do mítico -, em uma das versões sobre a morte do imperador persa Ciro, o Grande, a rainha Tômiris decapita seu cadáver após a batalha contra os masságetas e mergulha sua cabeça em um odre cheio de sangue humano.
Além do fato de terem suas cabeças extirpadas, as personagens masculinas nas histórias acima possuem em comum o fato de representarem autoridade e prepotência. E ainda que se possa argumentar que João Batista se diferencia dos demais por estar do lado dos “virtuosos”, isso não anula a autoridade espiritual que derivava do seu carisma profético, nem sua prepotência moral, característica de líderes religiosos – lembremos que ele foi decapitado por criticar e condenar publicamente o casamento de Herodes com Herodíade (mãe de Salomé) considerado ilícito segundo a Lei Mosaica. Nesse caso específico, podemos dizer que o poder masculino é subvertido contra si mesmo pela influência e astúcia feminina.
A extirpação da cabeça de uma figura masculina poderosa por uma personagem que simboliza a astúcia e o poder feminino constitui uma imagem arquetípica que também aparece em mitos hindus. A deusa Durga, por exemplo, derrota o demônio búfalo Mahishasura perfurando-o com seu tridente e decapitando-o em seguida. Se, por um lado, Durga representa a encarnação do feminino e da energia criativa, por outro, Mahishasura pode ser interpretado como a personificação do ego inflado, do orgulho, da força bruta e da recusa de limites.
Ainda na tradição hindu, a deusa Kali decapita o demônio Raktabija e bebe seu sangue para impedir sua regeneração. A principal característica de Raktabija é a capacidade de multiplicar-se: cada gota de seu sangue que tocasse o solo dava origem a outro demônio. Kali, por sua vez, é considerada a contraparte feminina de Shiva e representa a destruição ativa – o poder em ação. Ao decapitar Raktabija e beber seu sangue antes que este atinja o chão, Kali encarna o arquétipo do feminino em sua potência destrutiva, enfrentando um animus que se multiplica indefinidamente. Visualmente, Kali costuma ser representada coberta de sangue, adornada com serpentes e usando um colar de crânios.
Em uma entrevista concedida em 1977, Marie-Louise von Franz foi questionada sobre a forma como as mulheres têm sido afetadas psicologicamente pela rejeição do feminino no mito cristão. Em sua resposta, ela aponta um impulsionamento psíquico das mulheres em direção ao animus, como um mecanismo de compensação diante da ausência de autoconfiança em sua própria feminilidade. Com isso, a mulheres teriam passado a se comportar “masculinamente” em busca de reconhecimento social em sociedades marcadas por um complexo patriarcal desequilibrado. No entanto, von Franz enfatiza que a supressão do feminino não é exercida apenas pelo “homem exterior”, mas principalmente pelo animus, ou seja, pelo aspecto masculino inconsciente na psique feminina. Assim, ela argumenta que o caminho para a libertação das mulheres seria “tirar o animus do caminho”. Do ponto de vista coletivo, isso se daria na construção de uma sociedade “contra o animus” (nesse caso, contra um animus excessivo e destrutivo) e não necessariamente “contra os homens”.
Estando o animus relacionado a um princípio pensante, associado à razão e ao intelecto, faz sentido supor que as histórias e mitos em que personagens femininas derrotam figuras masculinas de poder e autoridade extirpando suas cabeças remetem a um mesmo motivo arquetípico: a destituição de um animus excessivo e destrutivo pela força da anima.
Com isso, a recorrência dessas imagens sugere mais do que um ato de violência ou subversão isolada. Trata-se da dramatização simbólica de um confronto arquetípico entre forças psíquicas: o feminino que, ao invés de se submeter ao domínio do animus, o enfrenta e o transforma. Em vez de representar um embate entre os sexos, essas narrativas indicam um processo interno de reintegração, no qual a anima, ao assumir sua potência, confronta e reorganiza o desequilíbrio instaurado por um animus inflado. Nesse sentido, o gesto de decapitar não é apenas destruição, mas também uma forma de cura simbólica: uma exigência psíquica de reequilíbrio, onde o reconhecimento da potência do feminino é condição para a restauração da totalidade.
Márcio de Abreu- Analista junguiano com especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela The University of Nottingham e em Cultura e Sociedade pela UFBA. Bacharel em História com Habilitação em Patrimônio Cultural pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).