PARTE DE MIM – Um diálogo com a sombra

Vem cá. Quero falar contigo, que sempre me fala de doenças e de morte e me faz pensar em coisas tão duras, imaginar catástrofes, desconfiar de pessoas, incentivar minha insegurança, desacreditar de mim, criar situações que não existem, infligir pensamentos horripilantes, e me causar tanto pavor. Recordo-me de ti desde muito cedo; criança fugindo da cama com pesadelo. Temia fechar os olhos e voltar a te ver. Ainda temo. Diante do sonho mau, prefiro a insônia a ter que fechar os olhos e te encontrar mais uma vez. Por que expõe tanto a minha fragilidade e esfrega na minha cara o que há de pior em ser humana?

Por muito tempo me esquivei de ti, confesso até que te rejeitei. Mas hoje não quero fugir, nem te repreender, nem recorrer a Deus para me livrar de você. Vamos conversar? Quero te convidar a seguir comigo. E te agradecer por todas as vezes que me salvou de perigos. Quero ver o teu rosto, olhar no profundo dos teus olhos, e não mais te temer. Eu reconheço que existe e que faz parte de mim.

Quero te apresentar coisas que talvez ignore, já que a luz te apavora. Inclusive, quero que compreenda que, sem ela, a tua existência seria impossível. A luz é a tua irmã. Não a inveje. Você e ela são, em mim, a totalidade. Se, em algumas situações, rebelo-me contra ti para seguir um caminho iluminado, logo mais adiante prefiro te ouvir e entrar no vale escuro.

Ao longo da nossa existência, te considerei o meu pior inimigo. Tantas batalhas internas travamos…Batalhas cansativas, que me roubavam energia psíquica. Cansei de te enxergar como adversário. Decidi não oferecer mais resistência ao que julgo como mau, inferior e inaceitável. Nem desejo projetar componentes que são meus em outras pessoas. Mais que aceitar o lado sombrio de minha personalidade, quero respeitá-lo e acolhê-lo com gentileza. Seria esse o sentido de “amar ao inimigo” e “reconciliar-se primeiro com o adversário”? A lição de que só é possível amar verdadeiramente quando aprendemos a “amar ao próximo como a nós mesmos”? Pelo não, pelo sim, já que ainda não consigo me aceitar por inteiro, escolho começar por ti: minha  sombra, parte reprimida de mim.

Por Aline D’Eça
Em 06/04/2021