Por Cristina Sobral
Às vezes a vida nos brinda com alguma coisa que a princípio não entendemos direito, mas que aos poucos vamos compreendendo o real valor do que nos foi por ela ofertado, tal, por exemplo, estar ao lado de alguém que amamos, na vulnerabilidade trazida pelo Mal de Alzheimer, e poder fazer essa travessia com amorosidade, resiliência, bom humor, e sem vitimizações recíprocas, atravessando com leveza as emoções mais profundas e as flutuações de ânimo de cada dia. É difícil? Sim, é difícil, exaustivo, mas também é tocante, precioso, bonito.
O Mal de Alzheimer, como se sabe, é uma doença progressiva que, além da memória, vai destruindo outras funções mentais relevantes e, normalmente, causa um sofrimento muito grande aos seus portadores nas fases iniciais da doença, em face da consciência que ainda têm sobre as consequências do que poderá advir. Em alguns momentos, a pessoa pode ficar muito triste, depressiva, confusa e não saber traduzir em palavras o que desejaria externar, tal a experiência que hoje vivi, ao me deparar com uma pessoa a quem muito amo sentada na sua poltrona com um olhar muito grave. Perguntei se ela estava bem e ela demorou um pouco a me responder. Depois de algum tempo me disse: “eu sou um estilingue”. Quis saber o que significava para ela ser um estilingue, e ela me respondeu que ainda não sabia explicar. Como eu estava apressada para um compromisso, não pude aprofundar a conversa, mas a pergunta ficou rodopiando na minha cabeça: o que é ser um estilingue?
Tomei banho com a pergunta na cabeça, me arrumei com a pergunta na cabeça e enquanto descia as escadas para o almoço um poema foi surgindo. Apressei-me a pegar papel e caneta para anotá-lo e enquanto almoçava o poema se oferecia. Aleguei que não estava com fome e fui para um lugar da sala a fim de terminá-lo, pois o poema, vocês sabem, é um bicho teimoso. O resultado da minha rendição segue abaixo:
ESTILINGUE
Eu sou um estilingue
lançando coisas ao vento –
dores fundas, sentimentos –
aos tantos ouvidos moucos.
Eu sou um estilingue
remesso vozes perdidas
amores, saudades poucas
e a minha voz já silente.
Sou estilingue, bem sei
de ressecada forquilha
lingueta de couro frágil
e seus elásticos frouxos
que se põe em arremesso
ao infinito possível.
Corri a apresentá-lo à pessoa querida, que o leu em emocionado silêncio. Disfarçando as suas lágrimas me perguntou: como você soube disso? Como soube? Respondi que o amor era um grande adivinho.
Cristina Sobral – Analista Junguiana, Especialista em Processo Criativo e Formação de Grupos numa abordagem junguiana.