Gran Torino: O Sentido de Uma Morte

Mensalmente, o Instituto Junguiano da Bahia oferece gratuitamente um espaço para divulgação do pensamento de C. G. Jung, chamado CINE DEBATE. Escolhi discutir este mês, uma película intitulada Gran Torino. Trata-se de mais um filme intrigante de Clin Eastwood. Percebi, na história, vários aspectos importantes da vida de um homem ao envelhecer. Dentre esses, ficaram-me evidentes a solidão e o sentimento de fracasso ao provar o senso moral deteriorado dos seus filhos. O que fez o Sr. Walt, ao amar tanto uma mulher, ter filhos com ela e não conseguir passar para eles algum tipo de respeito paterno? Poderemos imaginar o quanto é importante e desafiador para um casal, deixar espaço para estabelecer vínculos afetivos de ética e respeito com os seus filhos. Da mesma forma  também é deleterio quando o casal vive apenas o papel de pai e mãe. Nesse caso eles deterioram o vínculo entre eles e vivem intensamente para os seus filhos. Daí muitos indivíduos ficam presos eternamente na terra do nunca, como Peter-pan, sem conseguir sair da segurança dos pais para ter uma vida verdadeiramente adulta.

Uma das maiores dificuldades do homem, é perceber os valores do outro quando o muro do preconceito os tornam invisíveis. O personagem Walt Kowalski, um americano que participou da guerra da Coréia, percebeu no seu bairro o reflexo do seu envelhecer. Os velhos conhecidos foram sendo substituídos por desconhecidos e, como se não bastasse, povos de outras raças. O estrangeiro, como estranho, é fácil receptáculo para projeções da sombra. Ele demonstrava esse produto psíquico, demarcando rigidamente o seu território com a impressão de defender-se da invasão.

Mas foram os vizinhos asiáticos os representantes maiores de sua sombra. Traziam a lembrança de um passado cruel, cheio de sofrimento, violências e culpas. Foi no plano subjetivo que ocorreu uma verdadeira invasão. A garota Sue tocou a alma do velho e o transformou.

O contato com Sue se deu quando Walt a defendeu da insanidade de uma gang latina e verificou a covardia do rapaz que o acompanhava. O desprendimento da jovem frente às ameaças, revelou a ele o quanto ela estava preparada para viver e nada mais a assustavava tanto. Dessa relação, o Sr. Walt descobre o que é uma família e, mais ainda, desperta para a espiritualidade por meio da figura de um xamã. Jung chamou a essas figuras de personalidade Mana, uma denominação dada para individuos bem relacionados com a sua totalidade e, por isso, portadores de um admirável e irresistível poder sobrenatural.  Daí começou a sua transformação. Afinal, Sue faz o papel de uma ânima jovem, importante para ativar no senex o aspecto puer há muito sufocado.

O Sr. Walt trabalhou na Ford. O seu Gran Torino é um pedaço dessa vida ali representada. Os objetos mais significativos de uma experiência humana tornam-se símbolos e, dessa maneira, trazem de forma nostálgica os momentos cruciais de uma existência. O velho encontra o jovem e tímido Thal, irmão de Sue, quando este lhe tenta roubar o carro. É daí que esse ato une definitivamente Thal e o Gran Torino e, com isso, o Sr. Walt repara os erros do seu passado para morrer com dignidade. Teve a oportunidade de ativar o arquétipo puer/senex e se redimir da maneira como educou mal os seus filhos e da culpa por ter matado um jovem na Guerra, “quando o jovem só queria desistir”.

Por um erro do Sr. Walt ao tentar proteger Thal, provocou a vingança da gang Hmong, e esta estupra Sue. Esse erro não lhe foi ser suportado e, por isso, ele resolve dar um sentido maior à sua morte ao cometer o suicídio e salvar aqueles dois irmãos, responsáveis por sua transformação. Ao preparar-se para a morte, resolve confessar ao padre. Relata três pecados: não adulterarás, o sétimo pecado da lei de Deus. Sim, essa palavra significa misturar uma substância sem qualidade com outra de qualidade superior. O amor dele pela esposa era puro, enquanto a relação do beijo com uma outra, não oferecia qualidades e lhe trouxe a sensação de impureza. Deixar de pagar os impostos é desobedecer ao oitavo mandamento. Poderíamos compreender psicologicamente como o não saber distinguir o que pertence a si próprio e o que pertence a outra pessoa. Talvez ele tenha tirado dos seus filhos o pai terno e amoroso, levando-o por isso à confissão do terceiro pecado – honrar pai e mãe -, quando relata a forma como viveu afastado dos seus filhos.

A morte do Sr. Walt trouxe uma finalidade nobre; em lugar do morrendo afastado de uma família, conseguiu salvar a garota e o rapaz para uma vida digna. Aquela morte atendeu a uma finalidade maior, teve um sentido completo, em lugar de apenas se prender desesperadamente à matéria.