Um Pai de Cinema

O pai é o verdadeiro parteiro que possibilita que um filho possa seguir o caminho que transforma um menino em um homem pronto para a vida. A mãe, por outro lado, deverá ter com esse filho outra experiência de amar, que nunca deverá ser a de substituir a ausência desse pai. Essa foi a lição que aprendi ao ler o romance “Um Pai de Cinema” do escritor chileno Antônio Skármeta.

        Depois de assistir “O Palhaço”, filme de Selton Mello, Skármeta escolheu o cineasta brasileiro para levar o seu romance para a sétima arte. O resultado foi uma obra-prima de Selton que foi para a tela dos cinemas com o nome “O filme da minha vida”.

        “Componho minha vida com os materiais rústicos da aldeia: o som aflito do trem local, as maçãs do inverno, a umidade que sinto na casca dos limões tocados pelo orvalho da madrugada, a paciente aranha na escuridão do meu quarto, a brisa que balança as cortinas.” Com essas palavras, o nosso protagonista Jacques se apresenta e descreve sua vida simples em uma pequena aldeia chamada Contulmo.

        Um trem marca o evento traumático na vida de Jacques: “Eu desci do trem e ele subiu”. Enquanto Jacques descia do trem, depois de cumprir sua formação como professor, Pierre, o pai, subia no mesmo vagão, abandonando esposa e filho sem explicações. Como imagem arquetípica do caminho, o trem traz a transformação do menino em homem, mas leva o pai embora e com ele a alegria. O trem, portanto, torna-se um marco para Jacques, porque orquestra sua iniciação, que é a saída da infância para a maturidade, tal como ocorre nos ritos de passagem das sociedades primitivas, que são acompanhados de muita dor.

        O vento gelado apaga o vigor da mãe enlutada e o filho percebe que ele nunca substituiu o pai ausente. Esse foi um sinal positivo de que essa mãe foi capaz de cooperar na interação do pai com a criança, para que Jacques, adulto, tenha conseguido elaborar a perda da relação inicial com a mãe, ao entender que ele não é o único a compartilhar sua atenção.

        Quando nos atentamos para os mitos produzidos pelos nossos ancestrais, descobrimos as trilhas por onde caminham nossas almas. Dentre tantas histórias que os arquétipos mobilizaram a humanidade a contar, está a de Zeus. Esse deus, ajudado por sua mãe, Reia, liberta-se para vir a desenvolver-se com um complexo de poder. Esse é o poder de um ego capaz de uma agressividade que será saudável quando o indivíduo aprender a se defender, explorar o ambiente para adquirir segurança em seus estudos, autoafirmar-se e fazer a escolha de uma profissão e outras iniciativas pessoais.

        Na trama familiar, o sujeito se constrói ao passar pela obediência aos instintos e lançar-se pelos arquétipos, que traduzem nossa natureza ao produzirem os símbolos que criam a cultura. Tais símbolos, produzidos enquanto o menino está imerso no mundo da família, têm na interação saudável com o pai um auxílio para transcender o complexo materno e obter uma separação saudável da mãe. Essa é uma condição necessária para conseguir entrar adequadamente no mundo da sociedade e vir a amar uma outra mulher.

        Em nossa história, o moleiro Cristian aproveita a ausência do pai de Jacques e tenta tomar esse lugar. Para isso, ele se aproxima de Jacques por meio do conhecimento que tinha a respeito de seu pai, o qual era maior do que sua mãe parecia ter. O moleiro torna-se uma espécie de mentor para esse rapaz e o faz compreender muitos fatos, a ponto do jovem se comparar a um foguete explorando a noite espacial.

        No entanto, quando o moleiro tenta persuadir Jacques a acreditar que seu pai o amou apenas para passar um tempo na aldeia até se sentir livre para ir embora, o jovem refuta tal ideia, apoiado nas profundezas de sua alma que lhe garantem uma incontestável verdade de quem sente que é verdadeiramente amado por seu pai.

        A verdade chega até Jacques e revela que seu pai não foi à França, mas que sempre esteve próximo, em Angol, uma aldeia vizinha um pouco maior que Contulmo, acessível por um trem preguiçoso que transporta os poucos habitantes daquele lugar. Tudo se esclarece. Pierre, na falta do filho que saiu para estudar, foi lançado, pela transferência de afeto, para uma estreita relação com uma garota com idade para ser sua filha, e com ela teve o pequeno Emílio. Isso levou esse pai, empurrado pela vergonha do seu ato, a migrar com a criança para a cidade vizinha. Voltou a criar um filho, como fizera com Jacques, só que dessa vez só para ele. Enclausurou-se em um trabalho de operar a máquina de projeção do único cinema de Angol. Essa foi a equivalência energética do espaço vazio de afeto deixado por um filho que cresceu e viajou para voltar homem formado.

        O jovem professor, agora pronto para o sexo, se prepara para o seu primeiro encontro com uma mulher e descobre-se irritado com sua mãe. Esse é um conflito natural na luta para diferenciar o afeto de uma mãe daquele que lhe oferece uma garota. É dessa forma que se pode seguir a natureza do desenvolvimento, tomando em seus braços uma garota e amando-a como uma mulher diferente de sua mãe.

        Jacques compreendeu o erro de seu pai, que tanto o amava e o abandonou. Foram as memórias do que esse pai tinha sido para ele que lhe permitiram redimi-lo e afastar o juiz severo que o condenaria “culpado”. Foi, assim, vencido pelo árbitro objetivo e amoroso que deixou marcas na sua relação com esse pai, marcas que nunca se apagam, marcas que tornaram possível que pai e filho encontrassem o próprio sentido de valor dessa relação, em lugar de buscar aprovação externa.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana.

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