Traumas Coletivos e Complexos Culturais no Filme – “O Mordomo da Casa Branca”

Weisstub e Galili-Weisstub (2004) exploram a experiência do trauma e sua influência na formação de complexos, tanto na psique do indivíduo quanto na psique do grupo. A elucidação da interação dinâmica do complexo, na psique individual e do grupo, configura-se como tarefa que requer a circum-ambulação em torno do tema. Para os autores, os traumas externos provocam danos para o mundo interior. O trauma de um grupo, repetido por várias vezes, resulta na criação de complexos culturais que, muitas vezes, se tornam o alimento para mais eventos traumáticos. Esse círculo vicioso de traumas leva à formação de complexos que reforçam a precipitação do complexo em efeito cascata, promovendo efeitos destrutivos no indivíduo e no grupo.

O conflito até hoje existente entre brancos e negros, nos Estados Unidos, é um exemplo de um ciclo trágico que gera traumas coletivos e complexos culturais explicitados no filme O Mordomo da Casa Branca. O pequeno Cecil Gaines causou indiretamente a morte do pai, nos anos 1920, e viu sua mãe enlouquecer. Daí em diante, mudou sua maneira de agir, como se tivesse entendido o mundo dos brancos: “Sobrevivemos nele”, dizia o pai. Mais tarde, já dominando a “arte” de ser invisível, de se antecipar ao que “eles” querem e, principalmente, ter duas caras, o jovem – o qual aprendeu a servir na “casa grande” – torna-se o mordomo oficial do presidente dos Estados Unidos e fica na Casa Branca, durante mais de 30 anos.

Os pais, adultos que passaram por traumas quando crianças, como foi o caso de Gaines, que assistiu à morte do pai e ao estupro da mãe,  não são capazes de oferecer apoio aos filhos, pois os próprios se encontram feridos. Essa descoberta levanta questões sobre a falta de um sentido básico de segurança e sobre a percepção dos pais como impotentes (MARSALHA, 2003 apud WEISSTUB; GALILI-WEISSTUB, 2004). Gaines não conseguiu apoiar a esposa Eugene e seu filho Louis, o qual não aceita a passividade do pai diante dos maus tratos recebidos pelos negros, nos Estados Unidos.

 Em seus estudos de 2003, Marsalha conclui que o desejo da criança é um desejo coletivo nacional (WEISSTUB; GALILI-WEISSTUB, 2004). O significado disso é que há uma perda de fronteira do indivíduo, que se mistura com o coletivo. Os complexos culturais muitas vezes se superpõem aos interesses pessoais. Podemos considerar esse fenômeno como desistir de si próprio em nome da causa do grupo, conforme visto no filme, quando o filho de Gaines, Louis, desiste da faculdade e passa a pertencer ao grupo das Panteras Negras.

Os complexos culturais se expressam na vida do grupo e provocam os conflitos do grupo, como o terrorismo ou a guerra, onde o agente traumatogênico é um inimigo cultural identificado. As três defesas evocadas, além das pessoais, constituem igualmente parte do complexo cultural, experimentado não só pelas vítimas, mas por pessoas atacadas do grupo.

Nessa perspectiva, Singer e Kaplinsky (2010) identificam três componentes ativados, quando o espírito grupo é ameaçado: lesão traumática para uma pessoa vulnerável, grupo de pessoas, lugar ou valor que simboliza o espírito do grupo, medo da aniquilação do espírito pessoal e do grupo por um estrangeiro e surgimento de uma vingança protetora, a qual se configura como defesa do espírito do grupo. No filme, esses fatores estão presentes, por exemplo, no caso da violenta sequência de agressões que os adolescentes negros sofrem, na lanchonete, nas lutas, prisões e, principalmente, no ônibus, quando são atacados pelos  Ku Klux Klan.

A profunda vulnerabilidade do agredido pode ser explicada pelos escritos de  Winnicott, de 1960,  associada ao desenvolvimento do um “falso self” e o que Newmann, em 1990, classificou como ego de angústia. Os mecanismos de defesa do ego desabam após o trauma terrível, que resulta em sentimento de desamparo  (WEISSTUB; GALILI-WEISSTUB, 2004).

Na verdade, o aspecto preexistente de um severo superego punitivo pode explicar seus sentimentos de culpa e vergonha e sua tentativa de superar a fraqueza, mediante a identificação com o agressor. Também se pode perceber esses elementos no comportamento de Gaines, o qual, após todos os traumas sofridos, ainda presta serviço durante sete mandatos presidenciais na Casa Branca, entre 1957 e 1986. Enquanto se torna testemunha ocular da história e das negociações de bastidor do Salão Oval, em um momento em que o movimento de direitos civis desabrocha,  sua dedicação ao trabalho alimenta tensões em casa, afastando sua esposa e criando conflitos com seu filho mais velho, opositor do sistema.

Concluem Singer e Kaplinsky (2010) que discutir complexos culturais e reconhecer seus efeitos, nos indivíduos e no grupo, permitem uma compreensão mais profunda da vida psíquica de um grupo.  Eles fornecem uma chave para lidar com aspectos destrutivos da psique coletiva. A análise dos complexos culturais, quando aplicada, pode contribuir significativamente para a compreensão de conflitos nos grupos.

Como discutido anteriormente, Joe Henderson, em 1947, expandiu o conceito de inconsciente do complexo cultural, a partir da teoria dos complexos de Jung ([1934], 2011c).  Resumindo assim,  se o inconsciente pessoal pode ser entendido através dos complexos pessoais, o inconsciente cultural pode ser compreendido por meio dos complexos culturais. Tanto o complexo pessoal quanto o cultural surgem de aspectos arquetípicos que a psique traz, através de afetos, imagem, estrutura e dinamismo da vida individual e grupal – enquanto Gaines passa a vida a servir seus patrões brancos, o filho Louis engaja-se na luta pelos direitos civis dos negros. As situações parecem se suceder só para reforçar didaticamente esse contraponto entre dois estereótipos, o do negro submisso e o do engajado.

Em decorrência, podemos encontrar, na história, uma variedade de representações de traumas grupais como, por exemplo, o genocídio, o racismo etc. Além disso, podemos também adicionar traumas produzidos por pobreza, exclusão social e degradação social de milhões de pessoas que sofrem pela sua classe social e a cor da sua pele (KIMBLES, 2006.)

Os complexos culturais são manifestados na história cultural como uma estória e ideologia fundadas em experiências particulares e perspectivas ou significados de eventos atribuídos (KIMBLES, 2006).

Assim, no filme, tem-se uma longa viagem pela luta dos negros para serem tratados e terem os mesmos direitos dos brancos, indo desde a época da escravidão nos campos até a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Retrata as visões de Gaines e seu filho Louis, um jovem que nunca aceitou a condição social imposta para pessoas negras e que luta por direitos iguais, ao contrário de seu pai, que cresceu e acredita que precisa aceitar tudo que é imposto pelos brancos e agradecê-los por o deixarem viver em seu mundo.