Psicopatologia Afeto e Sistema de Valores

Partindo da narrativa junguiana, pode-se refletir que a psique possui refinado sistema de avaliação, ou seja, um “sistema de valores psicológicos” (JUNG 2013, §14). Valor designaria uma relação de intensidade e jamais uma substância, qualidade, propriedade específica, ou seja, nunca uma coisa em si. A energia psíquica neste sentido não expressa “nada mais do que as relações entre valores” (JUNG 2013, §50).  O sistema de valores usaria medidas de valores morais e estéticos coletivos (que são denominados de objetivos, pois associam-se a escalas de valores universalmente estabelecidas) e valores que podem não corresponder, exatamente, aos valores universais estabelecidos pois teriam sido vividos de maneira singular na vida de cada sujeito. Embora tivessem um arranjo vivido de forma particular e singular ainda assim teriam relação com valores coletivos.

Os complexos seriam elementos fundamentais na efetivação dos valores coletivos, transpessoais, em valores em valores vividos singular ou particularmente em cada um. Os complexos seriam conjuntos associativos de traços de vivências empíricas singulares organizados por padrões coletivos, universais ou arquetípicos (estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso, formas de viver, pensar e sentir); eles agrupam elementos com conteúdos emocionais seguindo valores que afetam de forma diferente cada um, as famílias, coletivos, sociedade etc.

Os complexos teriam importante grau de independência da consciência e realizariam avaliações seguindo circuitos formados por traços associados em intensidade proporcional ao afeto mobilizado. Os valores deixariam, assim, marcas através do afeto em relações associativas que funcionaria sem que a consciência precisasse perceber. Este circuito de afetos poderia conduzir os sujeitos se sentirem obrigados a realizarem valores coletivos internalizados.

Os complexos dariam significado e sentido ao evento pois não haveria acesso direto ao “imediatamente dado”, na perspectiva Junguiana; sempre haveria um condicionamento psíquico que se interporia interpretando. A interpretação do complexo não faria apenas com que o evento pudesse aparecer na psique (caso contrário nem seria percebido ou vivido como presente) como também daria a tonalidade emocional e afetiva ao evento. A tonalidade ou a intensidade com que determinado evento afeta o sujeito pode ser vista como uma quantidade de valor. Quanto mais algo é vivido como tendo valor mais afetaria, o que não tivesse valor não afetaria.

O complexo seria um fator psíquico que pode superar as intenções da consciência – “um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não-liberdade” (JUNG, 1984, §201) e “(…) os complexos podem “ter-nos”. A existência dos complexos põe seriamente em dúvida o postulado ingênuo da unidade da consciência que é identificada com a “psique”, e o da supremacia da vontade. ” (JUNG, 1984, §201).  Estas ideias permitem superar a dominação da fantasia de que a consciência é única, como unidade autônoma, independente, autodeterminada; que deveria se guiar exclusivamente por padrões de unidade, identidade, espontaneidade e autenticidade expressiva. “As intenções da vontade ficam dificultadas [pela constelação de complexos] quando não se tornam de todo impossível. ” (JUNG, 1984, §201). Jung fala da extrema dissociabilidade da consciência – “cada fragmento da personalidade tinha uma componente caracterológica própria e sua memória separada. Cada um destes fragmentos existe lado a lado, relativamente independentes uns dos outros (…)” (JUNG, 1984, §202). Cada complexo como uma “personalidade fragmentaria” teria um elevado grau de autonomia, independência uns dos outros podendo revezarem-se.

As avaliações feitas pelos complexos, seguindo valores universais (padrões arquetípicos), seriam singularizados nas vidas vividas por cada sujeito, porem com suporte nas relações familiares, de trabalho, sociais, culturais, etc. que se constituem compartilhando os mesmos valores. Avalições dependeriam do modo como as coisas são vistas, vividas, sentidas, interpretadas pelos complexos. Como o “modo de ver as coisas correspondem a atitudes psicológicas” (JUNG 2013, §41), uma atitude orientada para adaptação seria sempre unilateral conduzida por complexos seguindo valores. Avaliações diferentes com intensidade diversas poderiam produzir vários tipos de efeitos. Ao entrarem em relação podem ser comparadas umas com outras determinando-lhes força relativa. O que permitiria reconhecer a intensidade de valores desiguais ou iguais que se equilibrariam ou não. (JUNG 2013, §15).  

O processo de progressão da libido é descrito no texto Junguiano (JUNG 2013, §60) como uma atitude de adaptação ao ambiente, entretanto é salientado que o termo não seja confundido com evolução ou diferenciação; designa apenas o fluxo continuo, o decorrer da vida – “Evolução e involução, em princípio nada tem a ver com progressão e regressão (…) ” (JUNG 2013, §70). Como a adaptação nunca se realizaria plenamente uma vez que há uma constante modificação dos contextos, os habitus, quanto mais persistentes forem, menos efetivos seriam no trabalho de adaptação. Portanto, quanto mais habituado, menos adaptado. A progressão exigiria um constante trabalho de adaptação e inadaptação.

As modificações constantes nas condições exigiriam novas atitudes havendo progressão se “o impulso e contra impulso, o Sim e o Não, chegam a uma ação e influencias reciprocas regulares. ”  (JUNG 2013, §61); caso isto não acontecesse cessaria a progressão da forma de vida existente e aumentaria desagradavelmente o valor psíquico de certos conteúdos conscientes. Pode-se entender que no fluxo habitual da vida elementos em contradição (sim e não, quero e não quero, gosto e não gosto etc.) poderiam coexistir e se equilibrarem, sem precisar da consciência julgando valorativamente. Ao acontecer a interrupção deste fluxo haveria represamento da energia psíquica que se manifestaria sintomaticamente como afetos intensos e tendências a explosões. Quanto mais durar o represamento, mais se elevariam os valores dos elementos em oposição incrementado pelas cadeias associativas que constituem cada um dos complexos que julgaram e produziram modos diferentes de ver as coisas. “A tensão leva ao conflito; o conflito leva a tentativa de reprimir-se reciprocamente, e, quando consegue-se suprimir o partido oposto, instala-se a dissociação (…)” (JUNG 2013, §61). Com isto um lado se baseia no oposto cindido que passa a funcionar como elemento perturbador.

A cisão e conflito potencializa-se uma vez que teriam sustentação cada vez maior nos elementos das cadeias associativas de valores transpessoais ou coletivos que podem nem ser percebidos pela consciência. Ou seja, o inconsciente adquire uma maior influência sobre a consciência; o sujeito é conduzido, muitas vezes sem se dar conta, por valores coletivos vivendo-os como se fossem questões particulares. Não é de se estranhar que seja apontado que nas psicoses haveria “predominância do material coletivo”. (JUNG, 1999, §525). Na clínica percebe-se que os conteúdos de atividade delirante frequentemente envolvem problemas coletivos (a disputa entre o Bem e o Mal, Deus e o demônio etc.) como se fossem questões particulares. 

Este movimento da energia psíquica em direção às associações coletivas inconscientes pode resgatar valores que foram coletivamente excluídos ou desvalorizados nas tentativas de adaptação da consciência dirigida por outros valores sociais, coletivos mais dominantes no momento contexto em que a tentativa de adaptação realizou-se. Por isso “(…) os conteúdos inconscientes ativados na regressão são valiosos germes (…)” (JUNG 2013, §65) de novas possibilidades de vida, de renovação existencial. Este movimento em direção aos padrões associativos internalizados. É apontado que a consciência resiste aos conteúdos diferentes do dominante, a empatia com estes é importante, embora seja insuficiente ficar apenas com este novo cenário sendo necessário que a atitude adaptativa anterior entre em relação de colaboração com a outra e a progressão possa retornar. Como estes elementos constituíram-se em oposição (impulso e contra impulso) – ” (…) o intenso conflito exprime um desejo igualmente intenso de recompor a ligação rompida. Na verdade, não ocorre um trabalho de colaboração (…)” (JUNG, 1999, §516) no que é descrito como neurose para Jung.

(…) Existe uma loucura divina, que nada mais é do que a vitória sobre o espirito dessa época pelo espírito da profundeza, falai então da loucura doentia, quando o espirito da profundeza não pode mais retroceder e obriga a pessoa a falar em línguas em vez de falar numa linguagem humana, e a faz crer que ela mesma é o espírito da profundeza. Falai também da loucura doentia quando o espirito dessa época não abandona uma pessoa e a obriga a ver sempre apenas a superfície, a negar o espirito da profundeza e considerar a si mesma o espirito dessa época. O espírito dessa época é não divino, o espirito da profundeza é não divino, a balança é divina.

(JUNG, 2013c, p.136) negritos meus

Esta reflexão pode levar a ideia de que haveria um tipo de sofrimento em todo processo de socialização, de adaptação, de construção de identidades socialmente reconhecida, de constituição do Eu, ao internalizar padrões de conduta, “habitus” que poderiam ser utilizados, normativamente, sobre os sujeitos, a psique e a vida. Como as relações socialmente organizadas e constituídas, ao seguirem valores, expectativas, exigências, seriam investida e se internalizariam de várias maneiras, sofrer-se-ia por não poder tomar distância das normas que obrigam a realizar certos valores, certas expectativas, que, para um complexo, parece totalmente ligadas à realização de uma vida bem-sucedida. Intensifica-se o sofrimento quanto mais tirânico for o imperativo de realizar determinados valores, mas também por viver as ameaças a estes valores como catástrofe. Quanto mais adaptado, mais habituado ao ambiente, pode-se viver a distância desta adaptação como catástrofe e automaticamente acionarem-se múltiplos mecanismos de defesa, quer a consciência queira ou não; estes podem produzir mais intensidade no sofrimento ainda.

  

Auxilia traçar semelhanças profundas entre esta forma de pensar e as ideias de George Canguilhem no texto “O Normal e o Patológico” (CANGUILHEM, 2000) quando afirma que doença acontece quando só se pode admitir uma única norma, não se pode ultrapassá-la, infringir a norma habitual e constituir normas novas – “o doente é doente por só poder admitir uma norma. O doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo. ” (CANGUILHEM, 2000, p.149). Ou “o que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas. ” (CANGUILHEM, 2000, p.160). Ou seja, se está doente quando se está totalmente absorvido pelo meio; mas o meio não está do lado de fora. O meio seriam os padrões que atravessam e constituem indivíduos, pessoas, famílias, sociedades, culturas etc. Ele exerce seus efeitos nas ideias e valores que orientam, famílias, sociedade e não só dirigem, mas constituem a identidade do Eu nas pessoas.

A narrativa junguiana permite assim uma reconfiguração da noção de doença mental (psicopatologia) indicando-a quando um padrão dominante na consciência se torna um governo interior tirânico (a serviço do “Eu” ou não) imbuído de ações dominadoras em oposição e embate contra manifestação diversas, vivem estas como inimigos a serem combatidos – sintomas.

Se os diagnósticos categoriais da psicopatologia podem mostrar as normas coletivas valorizadas de forma mais viva e encarnada das quais o sujeito, em crise, as experiencia de forma imperativa e não consegue tomar distância ou constituir novas normas. De outra forma, os complexos chamados “patológicos”, recuperados no movimento regressivo da energia psíquica, exprimiriam outras normas de vida possíveis, que teriam organizado os eventos em constelações de forma diferente, a partir de diversos estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso. Padrões arquetípicos vários legitimariam outras formas de viver, pensar, de sentir etc. O patológico não seria a ausência de norma, mas uma norma diferente, mas repelida pela instância que está, naquele momento, dominando a vida.

Espera-se com esta reflexão enfatizar a importância da atitude na consciência em que o desconhecido, misterioso tenha tanto valor como o que parece mais conhecido e valorizado e os diversos padrões possam ser ouvidos e trabalharem em colaboração.

Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.