Psicologia analítica, criatividade e o homem contemporâneo

Na década de 30, Freud escreveu sobre o mal estar da modernidade, a angústia do homem frente ao mundo prometeico, sólido, ordenado, estável e seguro. Para Freud, o mal-estar vinha precisamente da limitação da liberdade de seguir as pulsões da libido em troca de mais segurança ante a ameaça inerente à fragilidade do corpo, a agressividade do mundo e dos vizinhos.

Hoje os tempos mudaram. Estamos no admirável século XXI, tempo de insegurança e inquietação. Para Bauman (1998), a solidez da estrutura da ordem moderna, em que as ações humanas podiam encontrar certezas e portos seguros, deslocam-se para uma sensação flutuante de ser. Navegando e podendo se afogar na fluidez do mundo liquido, o homem pode sentir agudamente a insuficiência de se manter inteiro frente à banalização das experiências. O mal estar hoje é o vazio existencial.

Esse vazio existencial já é descrito por Jung: “Tenho visto as pessoas tornarem-se frequentemente neuróticas quando se contentam com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vidaSua vida não tem conteúdo ou significado suficientes. Se tem condições para ampliar e desenvolver personalidades mais abrangentes sua neurose costuma desaparecer”.

Deirdre Bair, autora de “Jung – Uma Biografia” em entrevista à Folha de São Paulo, em 25 de junho de 2006, diz:

Eu verdadeiramente acredito que o século 20 foi freudiano, mas que o século 21 será junguiano. Pense nas pessoas hoje, em todo o mundo, que estão em busca de satisfação pessoal para suas vidas. Elas estão lendo Jung em número recorde e encontrando em sua teoria um modo de pensar que traz sustentação espiritual que elas não podem achar noutro lugar, na política, nas artes ou mesmo na religião organizada. A teoria de Jung da “individuação” ajuda as pessoas a aceitarem-se como são enquanto começam a longa jornada de auto-exame para tornarem-se as pessoas que querem ser.

 

O remédio para os problemas da sociedade de massa, não reside principalmente em ação política ou social, mas sim em uma volta às necessidades espirituais do indivíduo, a uma redescoberta do Si-mesmo. A individuação, eixo central da teoria junguiana, é, portanto, o único remédio fundamental, a longo prazo, para as tribulações do homem moderno.

A individuação, realização do vir-a-ser do homem, cujo objetivo final é a integração de consciência e inconsciente, significa tornar-se um ser único, na medida em que por individualidade entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável (JUNG, 2016)

Significa a “realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo particular. (…) é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo aliado a máxima liberdade de decisão própria (JUNG, 2013, §289).

A individuação está associada com a capacidade de dizermos um “sim” consciente a designação, ao daimon, o que implica numa liberdade na ação pois somente pela ação é que se torna manifesto quem somos de verdade (JUNG, 2013). Há uma valoração significativa da ação em relação às nossas intenções, desejos, sentimentos ou pensamentos.

O daimon corresponde a essa semente criativa interna, que todos nós temos e que pede para ser vivida e expressa. Como um escultor, precisamos dar forma à essa energia. Ela nos dá singularidade, realização pessoal e autonomia em relação ao mundo. Exerce sobre nós um grande fascínio, de nos tornarmos aquilo que somos.

Deixar a semente virar árvore é um processo de diferenciação psicológica, inato, que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual. É outra forma de falarmos sobre a individuação.

No nosso ofício de terapeuta junguiano devemos aprender a reconhecer (em nós e em nossos clientes) a carga invisível que carregamos e elaborarmos uma fantasia sobre ela que corresponda à imagem do coração. Quando há esse reconhecimento despertamos para o prazer e o sentido da vida.

 

A criatividade para Jung

 

Para Jung, nós temos 5 instintos básicos: autoconservação (fome, nutrição); Sexualidade (procriação); Atividade (ação, luta pela sobrevivência, agressividade); Reflexão (religioso e a busca de significado) e Criatividade (ligada ao Daimon).

Jung nos diz que “se você não tiver absolutamente nada para criar, então talvez crie a si próprio”. James Hillman denomina “criatividade psicológica” o cultivo da alma, objetivo maior da terapia.

O reencontro com a alma se realiza por meio da imagem. Estar perto da alma implica em perder o sentido, descer para ascender. Para Jung se estamos à procura da alma, devemos buscar antes as imagens de nossas fantasias, pois é assim que a psique se apresenta diretamente

Trabalhar com a alma é trabalhar com a psique. “Receber a imaginação, imaginar com ela e tudo aquilo de desmontar, descobrir, fantasiar, expor, pressionar” (HILLMAN, 1981).

“Existe uma obra necessária, mas escondida e peculiar, uma obra-prima, que tu precisas realizar em segredo…e antes que não tenha realizado esta, não pode chegar às suas obras exteriores. Não olheis demais para frente, mas para trás e pra dentro. No mundo interior não existe uma explicação do caminho, tampouco quanto podes explicar no mundo exterior o caminho do mar. Eu aceitei o caos, e na noite seguinte minha alma veio a mim” (JUNG, 2013, p. 307-308).

 

Só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar. Aceitar o caos implica em viver a angústia existencial, perturbação que vai formar a pérola criativa dentro de nós. Entender e compreender que no processo de individuação é necessário ser abandonado, para o desenvolvimento de nossa personalidade enquanto heróis de nossas vidas, é o caminho para a cura.

Lembrando que estaremos novamente nos braços e ventre da grande mãe em cada processo de morte-renascimento. Quiron e Obaluaê, figuras mitológicas que representam o arquétipo do curador ferido, compreenderam essa dinâmica. Por isso, tornaram-se professores da vida. A dor não desapareceu, mas a compreensão dela o faz transcendê-la transformando o sofrimento em compaixão.

Os anos nos quais eu estava entrando em contato com as minhas imagens internas foram os mais importantes da minha vida – neles tudo de essencial foi decidido. Tudo começou aqui: os detalhes posteriores foram apenas suplementos e clarificações do material que brotou do inconsciente. Foi a prima matéria do meu trabalho tardio” (JUNG, 1981).

Para Jung, o tratamento da psicologia deveria, no geral, ser caracterizado pelo princípio da universalidade. Não deveria ser proposta nenhuma teoria ou questão especial; a psicologia deveria ser ensinada em seus aspectos biológicos, etnológicos, médicos, filosóficos, culturais-históricos e religiosos (SHAMDASANI, 2006).

Partimos da idéia proposta por Hillman (1981) que a psicoterapia junguiana deve  “atravessar o rio em direção às ruas”. A psicologia analítica deve deixar os consultórios e situar-se mais genericamente na vida.  O planeta precisa de terapia.


 

Ermelinda Ganem Fernandes

Médica, Analista junguiana, Doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC), Coordenadora do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Processo criativo e facilitação de grupos-abordagem junguiana.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 2013

JUNG, C. G.  O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016.

HILLMAN, J. Estudos de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

JUNG, C. G. O livro vermelho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. liber Primus.

SHAMDASANI, S. Jung e o nascimento da psicologia moderna. São Paulo: Idéias e Letras, 2006.2006.