Peixe Grande

Será que tudo isso aconteceu? É uma pergunta que às vezes fazemos quando terminamos de ler ou ouvir uma história. Ficamos interessados na realidade dos fatos e essas histórias do passado certamente serão embelezadas pelas projeções de nossas fantasias, pois todos os fatos que experimentamos em nossas vidas são pintados por nossas percepções e emoções.

O romance “Peixe Grande – uma fábula de amor entre pai e filho”, escrito pelo americano Daniel Wallace, conta a história de uma relação entre pai e filho que coloca um confronto entre a narrativa literal dos fatos e as histórias fantásticas. Will Bloom é um jornalista que se preocupa com o que acha verdadeiro, enquanto seu pai, Edward Bloom, vive uma vida de sonhos e fantasias em que conta pequenas histórias fantásticas, encantando a vida das pessoas que as escutam. O filho condena essas histórias por entender que são mentiras, enquanto o pai lhe explica: “Somos contadores de histórias nós dois. Eu falo as minhas e você escreve as suas. É a mesma coisa”.

Quando o homem surgiu, ou a criança nasceu, do “todo misterioso”, que é o mundo imaterial da psique, brotou o que Jung nomeou de complexo do “eu”. Enquanto o “eu” é responsável pelo pensamento dirigido e lógico que nos ajuda a compartilhar e ser entendido pelo outro, o “todo misterioso” se expressa por meio de um pensamento não dirigido e simbólico, que é a linguagem de nossa natureza. Na primeira metade da vida, estamos tão ocupados com nossas realizações no mundo que esse “eu” se distancia desse “todo misterioso” que fala uma outra linguagem.

Cada homem experimenta sua história pessoal, mas também a história da humanidade em si. O “eu” que lhe dá a identidade é uma bricolagem de tudo que existe em todos os outros homens, e é a combinação entre esses fragmentos da psique coletiva que forma o indivíduo como singular.

Ao longo dos tempos, percebemos que a humanidade criava mitos, contos de fadas, lendas e folclore, recheados de imagens que preservam um padrão universal e transcultural na psicologia do desenvolvimento humano sem impedir a singularidade de cada indivíduo. Essa condição revela modelos pré-existentes em nossa psique, o que nos permite viver nossas experiências paradoxalmente criativas e previsíveis.

Em nossa infância, quando o “eu” ainda está próximo do que lhe deu origem, o “todo misterioso”, criamos e nos divertimos com qualquer objeto que projetamos em nossa imaginação. À medida que amadurecemos, o “eu” se torna um sensor a serviço da chamada realidade compartilhada. Ficamos habituados a descrever os fatos para expressar o que pensamos, mas é só com as metáforas dos poetas que o que falamos ou escrevemos se torna interessante.

Quando contamos histórias com frases que oferecem um gradiente energético entre a fala normal e a criação do fantástico, produzimos uma força que nos arrebata do mundo comum para um universo que encanta a vida. Edward Bloom diz ao filho: “A maioria das pessoas conta a história direta. É menos complicado, mas perde-se o interesse”. Enquanto a narrativa direta é bruta, desinteressante e efêmera, a narrativa traduzida das profundezas da alma humana é simbólica e corrige essa distância.

Os símbolos, revelados pelas fantasias, compõem a linguagem da psique e é por meio deles que a relação entre a consciência e o inconsciente se revela. Por isso, na psicoterapia, enquanto nossos clientes relatam os acontecimentos, ficamos atentos às fantasias, são elas que trazem e desvendam qual a verdade que se esconde por trás dos relatos.

A realidade objetiva, que compartilhamos com o outro, engana-nos até conseguirmos abandonar as certezas absolutas. É só dessa forma que poderemos compreender o outro. De acordo com Jung, nossa psique traduz, filtra, alegoriza, desfigura e até falsifica tudo que nos é transmitido e nada é absolutamente verdadeiro, nem mesmo isso é totalmente verdadeiro. Vivemos imediatamente apenas no mundo das imagens.

“Peixe Grande – uma fábula de amor entre pai e filho” é como a vida. Há pessoas que se agarram ao concreto e outras que põem ênfase no sentido oculto das coisas, aproximando-se destas, de antemão, com uma disposição simbólica. É através dos símbolos que damos sentido ao existir. Campbell, prestigiado antropólogo do século passado, diz em sua obra que precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significado e, para isso, o “eu” precisa voltar a se relacionar com o “todo misterioso” ou o Deus dentro de cada um de nós.

Em suas histórias, Edward Bloom deixava mensagens como: “Impossível separar o homem do mito”, “O maior peixe do rio cresce tanto, porque nunca é pego”, “Qualquer caminho fica mais perigoso no escuro”, “Quando conhecemos o amor das nossas vidas, o tempo para” e “O destino sabe como envolver um homem e pegá-lo de surpresa”.

Em sua hora derradeira, Edward Bloom é levado pelo filho a viver o mito de tornar-se o peixe grande e experimentar sua passagem embalado pelo amor desse filho que aprendeu a se relacionar com o mundo maravilhoso do “todo misterioso” e entendeu a beleza da linguagem literária, ou a linguagem da alma. Para Edward Bloom, um homem conta tantas vezes sua história que se torna uma delas. Acontece que elas continuam vivendo após ele e, desse modo, ele se torna imortal.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br