País que Precisa de um Guia não Cria Identidade

A política é um escândalo atrás do outro, a economia se desmanchou, a insatisfação é geral. Mas é nesse cenário, que tanta gente considera o pior das últimas décadas, que a psicanalista Denise Ramos acende a sua lanterna: “Estamos passando por um processo profundo de desilusão que vai ser a nossa salvação”.

Titular de Psicologia da PUC paulista, com os olhos voltados para patologias sociais como preconceito e corrupção, a professora acaba de voltar de Chicago. Viu ali, bem de perto, a entusiasmada adesão de milhões de eleitores ao que chama de “poder sombrio do líder carismático”, no caso o candidato republicano Donald Trump. E faz um paralelo com outro líder carismático que vive uma situação inversa – o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O que ela chama de “salvação” é o processo em que o cidadão começa a se libertar dessa ideia, a perceber que guias e salvadores não são o melhor caminho para formar um País. “É preciso acabar com essa dependência de um líder, para que o País amadureça e estabeleça sua identidade como nação”, diz a psicanalista. Nesta entrevista a Gabriel Manzano, em seu consultório em Perdizes, ela afirma: “Tem de ir mais fundo na crise, jogar as cinzas fora, pra que nada reste delas. Fazer surgir o novo, sem o velho”. A seguir, os principais trechos da conversa.

Muita gente vê, nos graves problemas hoje vividos pelo Brasil, o fracasso de um líder carismático – o ex-presidente Lula. Ele próprio já falou a respeito. O que isso significa na cabeça dos eleitores que o apoiaram desde sempre?

O líder carismático tem um poder enorme, seja para o bem ou para o mal. Ele pode construir ou destruir uma nação. Em geral, quando ele falha há uma grande resistência emocional a aceitar essa derrota, a entrar no sofrimento da desilusão, pois é doloroso.

Por que é tão difícil admitir e buscar outras soluções?
Porque o papel desse líder, para seus fiéis, é o de um guia e salvador. É preciso entender como se da a atração de um cidadão por um líder carismático. Fala-se tanto de ideias, posições e raciocínios, mas o fator decisivo, quando alguém escolhe um partido ou um político, é a emoção. O que determina a escolha é uma identificação dele com seu escolhido. Ele projeta no outro algo que tem dentro de si que é precioso e que o líder vai levar adiante.

Onde ficam a lógica, a razão, as provas objetivas?
Em plano secundário. O que está em jogo é uma afirmação de identidade. Tem mais. O líder joga com imagens, e imagens são uma arma poderosa. E o pior é que, com frequência, líderes carismáticos são excludentes: “Se você não está comigo, está contra mim”, ele impõe. Ao criar esse antagonismo, dispensando o diálogo, conduz ao fanatismo. E o fanatismo, já dizia (o psiquiatra suíço) Carl Jung, “é sempre sinal de uma dúvida reprimida”.

O que isso quer dizer?
Que, como a dúvida gera sofrimento e desconforto, eu me defendo fortalecendo ainda mais a minha crença.

No caso de Lula e Trump, cabe fazer algum paralelo?
Há muito em comum entre eles. O discurso de Trump é puramente emocional, não encadeia fatos, ele vai também só nas imagens, como Lula. No mesmo tom de “não há ninguém mais honesto que eu”, o discurso de Trump é que os EUA precisam ser fortes, que o Obama é fraco, que os islâmicos têm de ser expulsos, que tem de fazer um muro contra os mexicanos… Pouco lhe importa se é justo, se é necessário, se tem lógica… Mas que fique claro: nesse sentido, toda a humanidade é igual. A emoção é a grande condutora das fidelidades.

Há muita gente bem formada e informada no topo da vida cultural e científica apoiando a causa que é representada, de modo geral, por Lula. Gente que teria como escapar de truques emocionais. Como explicaria isso?
De fato. O que me parece é que também não querem sofrer a desilusão. Pelo visto, os dados da realidade não são suficientes para mudar uma ideia, uma vez que ela corresponde ao que a pessoa é, no seu mais profundo. Grandes nomes da cultura, em outros momentos e países, também permaneceram fiéis aos seus guias, não é só aqui e só agora.

No caso de Lula, pode-se dizer, por enquanto, que “é só uma fase” e que ele não saiu de cena.
Ele é um líder poderoso que no momento está afastado. Acredito que o poder dele continua forte. O que cabe advertir é que, embora haja à nossa volta muita gente que decide dispensar os serviços de um guia – veja as manifestações de rua, em que líderes de todos os partidos foram vaiados – a sensação de orfandade persiste e esse é um problema grave da nação. Mas entendo que esta é uma oportunidade para revermos a situação do País, parar de fantasias, sofrer a nossa história.

O que é sofrer nossa história?
É entender que o brasileiro, como povo, está mergulhado nesse sério complexo de inferioridade e precisa superá-lo.

Como é esse complexo?
É uma percepção funda, que vem das origens do País. Vieram nos colonizar e extrair nossas riquezas. Jamais se pensou – à parte alguns heróis aqui e ali – em um projeto de nação. Compare com os founding fathers, os pioneiros americanos, armados de disciplina e ética protestante, que cruzaram o mar justamente para, do lado de lá, criar uma nação. Eles tinham uma meta e uma direção. Aqui nunca tivemos isso. O que o brasileiro tem feito, historicamente, é tentar identificar-se com o americano ou com o europeu. Ele tem vergonha de ser brasileiro. Se não fizermos uma séria revisão de nossa origem, não formaremos um País sério. E isso começa afastando-se a ideia de que precisamos de um guia, qualquer guia, que nos aponte o caminho. É tarefa da coletividade.

Mas o Brasil tem suas qualidades e vitórias.
Dou-lhe um exemplo que acho histórico e bem recente, aqueles 7 a 1 sofridos diante da Alemanha na Copa do Mundo. Conversei sobre isso com amigos nesse país.  Estamos elaborando um texto sobre aquele episódio. O trauma já era evidente antes do jogo. Os brasileiros estavam cabisbaixos, paralisados em campo, rezando. Os alemães entraram tranquilos, seguros. Dava para adivinhar o que ia acontecer.

Qual o caminho, enfim, para se formar essa identidade?
Bem, podemos perguntar: o que é a identidade brasileira? Lá fora, eles pensam logo em carnaval e praia. E quando vai para lá um intelectual trabalhar, conversar, muitas vezes eles se surpreendem com a qualidade do cientista e do que ele faz. Mas deixemos de lado o meio acadêmico. Veja como são bons, criativos, os artistas das escolas de samba, criando do nada seus carros, alegorias e fantasias que encantam gente do mundo inteiro. Mas se você vai ver onde mora esse artista tão criativo e competente, é um barraco caindo aos pedaços. E nem sempre é problema econômico, é que ele não liga, não se valoriza. Não exerce seu poder em causa própria. Sua arte não é incorporada como um valor e o que se constata é uma espécie de autodesprezo.

Como lutar por uma identidade nacional num ambiente como o atual, em que as relações sociais estão conturbadas – pela falência da política, pela intolerância nas redes sociais e nas ruas, pelos casos de violência e de estupro, por uma epidemia de corrupção gigantesca?
Acredito, na contramão disso tudo, que essa é justamente a nossa salvação. Como todo mundo tem voz ativa e pode dizer o que pensa, a coisa pode caminhar. Aí cabe, como dever de todos, achar o caminho e criar uma irmandade. Eu vibrei quando vi que o povo foi para a rua se manifestar, porque não tinha um líder nem partidos manipulando. Estamos em outro momento histórico, no século 21, é hora de apoiar uma ideia pelo valor que ela tem, não para favorecer quem a propõe. A internet ajuda muito nisso, ao compartilhar ideias, contrapor. Não é um só apontando o caminho.

Mas as redes têm também grupos se agredindo, a linguagem é chula, há julgamentos apressados e violência.
Sim, há risco de violência. Mas é importante parar de projetar no outro o inimigo. Tem de perceber que o que ele quer é a mesma coisa que nós queremos, entender quem nós somos, isso tem de ser conversado e aí se começa uma nação. Parar de achar que quem pensa diferente é meu inimigo. Parar com a polarização entre esquerda e direita, criar um caminho do meio, como tão bem prega o budismo.

Vivemos, ao mesmo tempo, uma queda geral de prestígio de todos os partidos e lideranças. Como isso é percebido pela população?
Acho que aí há dois sentimentos: a raiva e a esperança. É uma coisa negativa ver tanto dinheiro dos impostos desperdiçado, dá uma revolta. Mas também a gente passa por um momento único, gosto de participar desse momento precioso para se mudar a história do País. Tem de ir mais fundo na crise, jogar as cinzas fora, pra que nada reste delas. Fazer surgir o novo, sem o velho.

O debate anda azedo em questões decisivas para a sociedade, como sobre gênero, homoafetividade, o recente caso do estupro no Rio….
Mas o caminho é um só, debater. Pois o outro lado disso é o esquecimento, o ocultamento, que foi o que aconteceu desde sempre entre nós. Será melhor passar a borracha, dizer por exemplo, como disseram, que “a culpa era da menina porque estava no lugar errado”? Tem tanta gente indignada, a mídia está refletindo um sentimento do povo. O escândalo é bom, serve para alertar, para buscar consertar de alguma forma.

Sente-se otimista? Acha que o País está vivendo uma preparação para outra sociedade, sem um grande guia?

Acho que estamos num impasse. Existe o risco, sim, de o Pais não avançar, repetir a fórmula anterior e consagrar um novo líder. A confusão é clima ideal pra aparecer de novo alguém dizendo “eu resolvo”. Pessoas infantilizadas e mais carentes vão à procura desse líder, pode esperar. Por isso entendo que esses movimentos de rua são fundamentais.

Mesmo tendo, nas ruas, os movimentos “do outro lado”?

Com uma grande diferença: o outro lado luta para continuar delegando o destino da sociedade a um líder. É preciso, como disse, que esse grupo passe pela etapa da desilusão, se afaste da ideia de um líder salvador. O que existia falhou. Eles precisam enfrentar seu desafio, criar novas forças, sem projetar tudo no salvador. Por isso é que digo que passamos por um processo profundo de desilusão. E ele é a nossa salvação.