O trabalho do analista junguiano

O cliente chega ao consultório e se apresenta como um doente. Reduz todo o seu penar a um conceito: “Sofro de pânico”. O terapeuta, depois de uma interação empática, deixa-o à vontade para descrever como acontece nele esse sofrimento. O profissional fica atento às metáforas, que são carregadas pela narrativa do seu cliente, e observa as possibilidades de fazer analogias para uma comunicação mais eficaz.

Como o analista conhece muitas histórias contadas pelo inconsciente coletivo desde os primórdios da humanidade, fica atento a muitos ganchos possíveis de serem feitos para trazer à tona outra história que o seu cliente não percebe. Este lhe conta o quanto foi pobre, rejeitado por sua mãe, mas capaz de fazer bem os seus negócios. Ele agora é dono de uma empresa que vende roupas, onde antes era um simples funcionário. Sua marca chama-se Hefeston.  O analista acha curioso e lhe fala que esse nome lembra uma história da mitologia grega em que um deus, humilhado, abandonado e desprezado por sua mãe, tornou-se importante no mundo das realizações da arte. O cliente então lhe afirma que foi um funcionário exemplar e o patrão apenas explorava sua arte em criar os modelos mais bem vendidos. O analista lembra ainda que, nessa pequena história de Hefesto, há uma passagem em que ele flagra um adultério, vivendo assim uma outra humilhação. Entre sorrisos maliciosos, o cliente informa que, no seu caso, foi ele que humilhou o patrão.

O processo da vida precisa de que o ego-consciência resolva os impasses rumo a uma determinada direção. Talvez esse cliente tenha visto uma possibilidade de crescer na sua posição social, deixar de ser um simples funcionário de empresa para tornar-se dono. O terapeuta quis saber como foi essa passagem e o seu cliente explicou: “Quem vai querer descansar no galho que alcançou, se, na copa da árvore, apresentam-se galhos com frutos ainda melhores?”. “Galho, Galhos, adultério”, repete o analista. Ao que o cliente lhe diz: “Realmente, eu coloquei galhos no patrão”. O analista agora sabe que há uma relação entre a humilhação e a sua mudança de posição para ficar no topo.

“Chegar aos melhores frutos e não se acomodar no galho que alcançou” ou “chegar ao topo”, fazendo uma analogia com a copa da árvore, são símbolos traduzidos em metáforas. A linguagem simbólica usada pelo analista é a que oferece possibilidades em dialogar com a consciência e envolver o inconsciente para, dessa forma, conseguir fazer aquele que se trata conhecer aspectos de sua personalidade responsáveis por atos reprováveis, mas que lhe eram desconhecidos. Muitas vezes, o homem é condenado pelas ações de uma personalidade que desconhece.

O paciente aqui imaginado, devido a uma ocorrência atribuída ao destino, consegue seu enriquecimento quando, em um segundo ataque cardíaco, seu patrão morre. A viúva, que já era sua amante, facilita seus negócios e ajuda-lhe nas conquistas. A esposa do nosso cliente se acostumara à ideia da amizade entre seu marido e a esposa do seu patrão, afinal ela, antes de se tornar viúva, muitas vezes facilitava a vida desse empregado quando oprimido pelo patrão. Dos quatro filhos que o paciente tinha com sua esposa, apenas o adolescente lhe aborrecia com seus ciúmes.

Agora, pensou ele, estou atuando dentro dos meus parâmetros de honestidade. Revelei ao patrão, antes de ele chegar em casa, no dia do enfarte em que veio a falecer: estava tendo um caso com a esposa dele e gostaria de deixar claro que não tinha culpa, pois ela foi quem me procurou por diversas vezes, queixando-se do senhor, meu patrão. Viu o homem ficar irritado, querer lhe esganar, mas, devido ao seu organismo debilitado dos 76 anos, com doença cardíaca, limitou-se a dizer que nosso cliente estava demitido e resolveria a questão com a esposa, em casa.

O analista despertou, logo de início, os mecanismos de defesa que agiam em nosso jovem cliente de 38 anos, como um “defensor público” que trazia uma defesa frágil. Atento aos sonhos, o analista percebeu seus aspectos sombrios, que poderiam estar por traz dos seus sintomas. À medida que o paciente adentrava os espaços dos sonhos, revelando seu modo de imaginar, o analista começou a perceber o quanto outra personalidade no seu cliente atuava como um “promotor” procurando teses, provas, meios de mostrar onde estava ou qual foi sua ação, que o deixou culpado e o condenou a sofrer com essas ameaças de punição que a doença conceituada como “pânico“ o fazia sofrer.

O analista ora estimulava o “defensor”, ora o “promotor”. Fazia surgir uma tensão entre os dois, enquanto seu “juiz” permanecia quieto. O “juiz”, em sua personalidade, ele começou a entender, que o sentenciou antes mesmo de um julgamento eficaz. As perguntas surgiam a partir de imagens inocentes dos sonhos e iam ganhando significado. A pergunta de como ele ficou tão rico sem roubar e matar ficou como um corpo estranho, incomodando sua mente, afinal havia um morto e então poderia ter existido um crime. Nesse momento, vinha-lhe a ideia lógica de que a morte foi uma fatalidade, uma doença. Destinos o qual todos seguem curso igual, pensou o cliente.

As sessões estavam sendo sofridas, o cliente achava que o tratamento não estava adiantando muito e pensava em sair. Mesmo assim, trazia seus sonhos, que pareciam não explicar nada que fosse valer a pena. O analista, como um “parteiro”, levantava reflexões a partir das metáforas que eram trazidas nos sonhos e com arte o sonhador reimaginava e parecia viver a experiência onírica. Parecia estar passeando por dentro daquela realidade virtual. Ouviu, então, um corvo, que aparecera no sonho, perguntando-lhe: “Por que contou o adultério da esposa quando soube que o patrão estava com a saúde frágil devido a um enfarte que sofrera alguns meses antes?” Impaciente, gritou: “Eu fui honesto, honesto, honesto…” e sua voz ia sumindo.

Por duas semanas seguidas, o paciente esteve doente. O pânico parecia está sob o controle de remédios, mas ele sentiu necessidade de voltar à análise e, numa sessão tida pelo cliente como muito desconfortável, ele projetava o “juiz” no analista. Então lhe surgiu uma questão: era mesmo necessário contar ao patrão sobre a esposa, sendo que ele era agora o Hefesto que humilhava o outro e não aquele que era humilhado? O “promotor” atuava sobre sua personalidade obscura e continuava a lhe perguntar: o que o fez se desinteressar pela continuidade do romance com a viúva, depois que conseguiu o que queria e nada mais poderia obter? O “defensor” não conseguia convencê-lo de que são coisas humanas que acontecem no mundo e ele precisava agora ser fiel à sua esposa.

Saiu mal da sessão e pensou que gostaria de pagar para sair bem confortável e ficar só com os remédios do psiquiatra. Porém, um sonho lhe fez ver até onde sua proposta, que fez o seu enriquecimento, precisou ser feita, porque era a sua visão de negócios, enquanto a outra, com o “promotor”, à frente, contrariava-lhe e o deixava sem razão e com uma consciência mais ampliada para enxergar a personalidade que até então ele desconhecia e era responsável por seus atos.

Ao longo de dois anos, houve muitas mudanças na vida do cliente. Seu sintoma, que era chamado de “pânico”, uma espécie de “pane“, foi deixando de se manifestar sem a utilização de nenhum fármaco. Sonhou com elementos que o levaram a crer que sua personalidade desconhecida, que agora o seu ego-histórico o fazia olhar como era um homem identificado com o “comerciante coletivo”, que desconsiderava o modo como obtinha lucro. Foi conseguindo desvencilhar-se da persona do Don Juan e, à medida que sua consciência ampliava, seus sonhos vivenciados por meio do método que os junguianos chamam de Imaginação Ativa, trouxeram-lhe experiências que transcendiam o “defensor” e o “promotor”. Eles ainda diluíam a sentença do juiz, que provocava seu sofrimento como a pagar pelas ações de uma personalidade que lhe era desconhecida. Os acontecimentos em sua vida revelavam poderes maiores, não egoicos, que precisavam ser considerados e, por fim, levados à consciência.

Dessa forma, o complexo do ego-histórico que ficou conhecido e todas as ideias, como se pudesse ter sido uma história diferente, deixaram surgir em seu lugar uma “terceira coisa”, como resultado da sustentação dos opostos e sua conjugação, transformando-o numa nova pessoa, tendo boa disposição a participar da humanidade com a sua singularidade, tornando-se a realização de um inconsciente que sabia lidar com seus instintos básicos, suas relações de Eros e a vida imaterial com seus mistérios. Enxergou onde estava sua vida antes de renascer. Descobriu que a questão não é ficar paralisado na culpa e sim assumir a responsabilidade do que se pode fazer, no presente em que vive, para enxergar com um nível de consciência diferenciado.


Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br