O tarot e a individuação (parte 1) – do louco ao eremita

A nossa viagem começa com um jovem inocente, tendo uma trouxa nas costas e um cajado na mão. É chamado no tarot de “O Louco” ou o “Bôbo”. Tomando emprestado as palavras de Raul Seixas, será ele um maluco total, que vive na loucura real, controlando a sua maluquez, misturada com a sua lucidez? Olhando para ele podemos nos perguntar “será que cada um de nós se esforça para ser um sujeito normal, fazendo tudo igual?” Será que ele arrebentou o despertador e atirou pela janela tudo o que possuia? Resolveu tirar um período sabático para estudar? Ou foi pelo mundo afora, realizando a viagem dos seus sonhos? Talvez seja um facilitador que nos instigue a fazer perguntas.

Se acolhemos esse jovem despreocupado dentro de nós, sem lenço e sem documento, poderemos iniciar a jornada do tarô levando na mochila apenas a nossa intuição. Ou quem sabe alguma sabedoria, como a de Edgar Morin que nos diz que não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. “O Louco” é o herói, buscador, fora-da-lei, que subvertendo a ordem compensa a unilateralidade espiritual do arquétipo do herói. Na mitologia Iorubá corresponde à Exu, aquele que abre caminhos, mas que quando não honrado pode trancar ruas. Sim, porque precisamos estar dispostos a abrir mão das nossas zonas de conforto para podermos embarcar nessa aventura fascinante, arriscada, sofrida e recompensadora, chamada por Jung de processo de individuação.

Individuação significa tornar-se um “indivíduo, aquele que não se divide”. É a realização do vir-a-ser do homem, cujo objetivo final é a integração de consciência e inconsciente. Nesse caminho, a posição do ego fica relativizada pela sua conciliação com o inconsciente.

O processo de individuação, na mitologia, corresponde à jornada do herói. Todos nós somos heróis e as nossas jornadas apresentam alguns elementos comuns: estamos no nosso mundo comum, aparentemente tranquilo, cuja paz, porém, está ameaçada. Recebemos um chamado à aventura. Se recusamos o chamado, ativamos o anti-herói e nada acontece. Se aceitamos o chamado, aparece um mentor que nos ajuda. Fazemos uma travessia e entramos no desconhecido (é o que chamamos de entrada na floresta). Na floresta acontece a prova suprema – a luta com o dragão, nosso maior inimigo, aquele que ameaçava a paz em nossa terra natal. Como recompensa, recebemos o prêmio, um tesouro, a pedra filosofal. Mas temos que levá-lo à cidade. É o retorno, a volta ao mundo conhecido trazendo prosperidade e segurança para o mundo.

Utilizando o tarô como metáfora da individuação, vemos que o “Louco” é o inocente andarilho e representa o nosso ego, ainda sendo iniciado nos mistérios da expansão da consciência. Quando ele em nós aceita o chamado encontramos o mentor, um “Mago”, Hermes, psicopompo que vai nos ajudar a entrar na floresta do inconsciente. Um dos seus braços aponta para cima e o outro para baixo, indicando que somos manifestação da divindade, mas nem por isso privilégio algum da natureza, ou seja, “temos que ralar” . Talento é 1 % de inspiração e 99% de transpiração, como dizia Thomas Edison. Precisamos trabalhar com o que temos nas mãos, intuindo acerca do universo à nossa volta, buscando tornar a vida uma obra de arte (não perfeita mas harmônica).

Já na floresta encontramos os nossos pais e mães arquetípicos, primeiro as damas (a sacerdotisa e a imperatriz) e depois as figuras masculinas (o imperador e o papa).

A “Sacerdotisa”, faceta yin do feminino arquetípico, é conservadora, estável e imutável, tendo como principal característica a função de contenção. Está associada à intuição e testemunha a nossa verdade mais profunda. Na mitologia, pode ser representada por Perséfone ou Nanã Buruku. É a parteira da expressão da nossa vida criativa. Como não está vinculada ao patriarcado (e aos padrões coletivos de homens e mulheres), é considerada a sua própria senhora, virgem, una-em-si-mesma.

Já a “Imperatriz” corresponde à faceta yang do feminino arquetípico, aspecto transformacional, ativo, dinâmico, sempre presente nos movimentos de fertilidade psíquica. Está associada à gestação (de homens e mulheres). Apresenta-se como uma mulher sensual, voluptuosa e às vezes grávida. Em lugar do hábito de monja, veste uma túnica e uma camisa ornamentadas com graciosos bordados e faixas. Usa uma coroa de ouro aberta, semelhante a um halo, de centro carmesim, cor de sangue, pois é essencialmente a Imperatriz quem enche a coroa oca com o sangue materno da realidade terrena e do amor quente. É representada por Afrodite ou Oxum. Ama a beleza em todas as formas.

O “Imperador” rege o Logos, anunciando um novo começo, o princípio simbolizado pelo verbo. Está interessado sobretudo pelo bem-estar físico e social dos súditos. Já o “Papa” é um mediador e guia. É o pontifície, líder espiritual, que faz a ponte entre os mundos de cima e o de baixo (consciente e inconsciente).

A primeira ansiedade surge para o nosso inocente interno. É quando aparece uma encruzilhada e ele não sabe o que fazer. Ser ou não ser? Direita ou esquerda? Razão ou coração? Que caminho seguir? Ele adquire a forma do “Enamorado” e aprendemos com ele que precisamos dar o nosso próximo passo, para que não fiquemos estagnados no caminho. Com certeza teremos angústia e dificuldade em decidir, da mesma forma que Páris ficou dividido em decidir qual das três deusas ficaria com a maçã de ouro (Hera, Atená ou Afrodite). Ele escolheu Afrodite, com o seu reino da beleza e viveu um intenso amor correspondido com Helena (e de quebra ganhou de presente a guerra de Tróia!). Muitas emoções não?

Já mobilizado pelo processo de mudança surge para o nosso herói (que não esqueçam, nos representam) o “Carro”. Ele pode nos levar para casa ( a terra prometida) ou para outros lugares. Mas para isso precisamos assumir a responsabilidade por definir o nosso percurso de vida. Não podemos abandonar o nosso transporte (como vemos nos sonhos, quando o nosso carro está sendo dirigido por alguém e estamos no carona). O carro também pode estar em alta velocidade, desgovernado. Podemos mudar a direção da nossa trajetória, desde que aceitemos a luz e as sombras e transformemos os nossos medos em confiança e desenvolvimento da personalidade. As pedras no caminho? Quem não as tem?

Outro arquétipo que surge à esta altura (e profundidade), a “Justiça”, nos convoca a julgar, discriminar as situações que vão aparecendo em nosso caminho (usamos mais o sentimento ou o pensamento?). A espada representa o áureo poder de discriminação que nos faculta atravessar camadas de confusão e imagens falsas para revelar uma verdade central. Nesse sentido, lembramo-nos do Rei Salomão quando se viu diante de duas mulheres, cada uma das quais jurava ser a mãe da mesma criança. Ele sugeriu que se cortasse a criança ao meio, obrigando assim a verdadeira mãe a revelar-se instantaneamente pela sua reação emocional. Sem utilizar a espada, a introvisão aguda de Salomão chegou ao âmago da matéria.

Por fim, chegamos agora a um ambiente mais escuro e desértico da floresta. Estamos cada vez mais nos aprofundando. Como diz o poeta Arnaldo Antunes, “Alta noite já se ia, ninguém na estrada andava. No caminho que ninguém caminha, alta noite já se ia, ninguém com os pés na água. Nenhuma pessoa sozinha ia. Nenhuma pessoa vinha. Nem a manhãzinha, nem a madrugada. Nem a estrela-guia, nem a estrela d´alva…”.

Surge um segundo mentor para nos ajudar na travessia: o “Eremita”, representante do velho sábio que leva a luz do conhecimento para aqueles que o seguem, mas não se afasta do seu caminho para atrair atenção. É um aspecto introvertido que sabe andar no escuro. É o líder espiritual servidor. Nos ensina que cada um de nós traz algo único e novo ao mundo. A luz torna-se mais forte à medida que resolvemos as nossas contradições internas e externas.

A partir daqui o caminho continua… (e no próximo artigo contaremos o resto da história).

Ermelinda Ganem Fernandes. Médica, psicoterapeuta junguiana e doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). Coordena o Curso de Especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) do Instituto Junguiano da Bahia.