O sonho da borboleta

Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, não sabia se era Tzu que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu.

Imaginar é uma necessidade humana para preencher os espaços vazios deixados pelo distanciamento entre o universo conhecido e o mundo mergulhado na escuridão do desconhecido. Nada sabemos sobre o tempo nascido do nada ou o tempo antes do tempo, mas podemos imaginar. Imaginar é poder criar imagens para iluminar o que está fora do campo da consciência.

Esse imaginar nos leva à criação dos mitos, os quais revelam tudo que não sabemos. Os nossos ancestrais criaram mitos para ilustrar o começo de tudo. Por meio de símbolos e metáforas, fizeram os mitos da criação e explicaram como as divindades fizeram surgir as coisas, mas nunca explicaram o por quê. Quando um homem pouco esclarecido, ao ler a bíblia por exemplo, toma o mito de forma literal, tenta esticar ou encolher esses mitos para caberem dentro da lógica do ego.

Quando nos posicionamos como os sábios tal como Sócrates, admitindo que nada sabemos, entendemos a vida como um mistério. Criamos mitos e apreciamo-los para dar conta da tensão gerada entre a curiosidade e o ato de contemplar o mistério. A mesma postura aplicamos na apreciação de um sonho. Seguimos em frente, e uma sequência desses sonhos pode nos ajudar a conhecer melhor o mito que dirige a vida do sonhador.

Nossos sonhos têm a linguagem desses mitos. Por mais que pareçam descrever um fato possível, nunca deveremos fazer como aqueles que os ajustam para caberem no invólucro racional do ego. O inconsciente tem uma linguagem mitopoética e, por isso, o respeito a essa linguagem implica preservar a imagem da forma como ela aparecer sem reduzi-la a um signo, pois isso corta suas raízes com o inconsciente. Dessa forma, preservamos o conteúdo simbólico que essa imagem carrega quando levada para a consciência, sem destruir sua função como produto psíquico que surge como uma orientação da natureza. Essa é a condição do sonhador: ampliar sua visão e decidir sobre o comportamento ou o caminho a seguir.

Em nosso imaginário, habitam forças místicas que tentam destruir toda a realidade. Trava-se então uma luta entre o mundo da realidade consensual e o mundo dos sonhos. No mundo da realidade consensual, tudo é lógico. Fechamos os olhos e, ao abrirmos, encontramos a realidade tal qual deixamos. Quando sonhamos, entramos num lugar que não é consistente e nem consciente. Nesse espaço, achamos os mortos, criaturas míticas e diversas personagens que traduzem nossas experiências, com tonalidades afetivas, vestidas com as mais diversas formas de imagens.

Lewis Carrol, em Alice através do espelho, conta O Sonho do Rei:

– Agora está sonhando. Com quem sonha? Sabes?

– Ninguém sabe.

– Sonha contigo. E se deixasse de sonhar, que seria de ti?

– Não sei.

– Desaparecerias. És uma figura de seu sonho. Se esse Rei acordasse, tu te apagarias feito uma vela.

Não é um mundo em que os homens discutem com facilidade entre si, a não ser quando em análise.

Para buscarmos respostas para os nossos conflitos, utilizamo-nos dos sonhos. Estes trazem imagens e, quando dialogamos com elas à luz da consciência, aparecem

ideias reveladoras do que desconhecemos em nós mesmos. Esse processo é semelhante ao que acontece com a antologia da literatura fantástica, que oferece à nossa consciência coletiva os caminhos por onde trilha nossa humanidade.

Somos um corpo em constante modificação e com um tempo limitado para existir. Nesse corpo, experimentamos tudo que é da vida: dores, amor, arte, guerra, neuroses e todas essas experiências que descarregam sensações. Tais sensações se mesclam com marcas de experiências que guardam semelhanças sensoriais ocorridas em épocas anteriores para que o nosso córtex cerebral construa o enredo de nossos mitos, muitas vezes, fantásticos.

Interagimos com os sonhos nos incluindo nas imagens junto com as experiências sinestésicas e até auditivas que elas podem trazer. Pretendemos, além disso, alinhar nossos sonhos à sua base mitológica, como uma trilha moldada pelas experiências humanas de todos os tempos, sobre a qual fluem nossas experiências pessoais. Dessa forma, levamos o indivíduo a descobrir o mito que está vivendo e analisá-lo se precisa mudar para obter uma vida melhor relacionada com a natureza e, assim, seguir rumo ao desenvolvimento pleno da personalidade.

Para Jung, os mitos são revelações originais da psique sobre acontecimentos inconscientes, nada menos do que alegorias de processos físicos. E “todas as figuras míticas correspondem a experiências psíquicas internas e surgiram originalmente delas”. Quando reconhecemos um produto da psique como metáfora, o mundo invisível torna-se visível para nos permitir essa relação da consciência com o inconsciente.

Ao sonharmos com uma criança, poderemos imaginar tratar-se de uma memória da própria infância. Mas, ao refletirmos sobre a imagem dessa criança e experimentarmo-la, muitas outras ideias chegam até nós. Todas estão certas, mas qual delas vai ganhar importância clínica para nos apontar uma compreensão sobre aquela experiência psíquica? As imagens são multifacetadas, mas precisamos de uma dessas faces para fazer sentido e nos orientar sobre essa experiência interior. Afinal, uma criança, ao crescer, poderá ser um sábio ou um vilão.

Ao sonharmos com um cão, não deveremos ficar apenas com a instintividade. Talvez você tenha que lidar com o faro, uma percepção que precisa ser considerada no sonhador. Shopenhauer vivia uma vida solitária e, no lugar de buscar o convívio com as pessoas, buscava os cães e dedicava todo o seu amor a eles. Chegou a admitir que sua vida só teve sentido porque existiam cães. Quiçá você também precise recorrer ao inconsciente coletivo por meio da mitologia e buscar os diversos cães que aparecem nos mais diversos contextos para o ajudarem a encontrar o sentido desse sonho.

Uma das técnicas de que o Analista Junguiano se utiliza é a Imaginação Ativa. Nela precisamos exercitar o ego do cliente para torná-lo mais forte e de boa vontade. Com essa técnica, ajudamos o sujeito a encontrar uma vida dentro das imagens que poderá ser uma figura estranha dos sonhos. O ego precisa interagir e deixar a consciência se aproximar da imagem com respeito. Ativa a imagem e presta atenção ao que esta imagem quer fazer. Essas imagens envolvidas com o mistério vão gradativamente mostrando a trama do mito pessoal que está por trás de nossas decisões e escolhas.

O desenvolvimento da personalidade está em nos relacionarmos com a natureza através de nossas figuras da imaginação. Como evoluir e se relacionar com o cosmo e ser verdadeiramente religioso? É o mesmo ato de evoluir e se relacionar com as manifestações cósmicas em si mesmo. Como nos explica Jung, Deus não é um mito, mas se o mito que carregamos pode ser a revelação de uma vida divina no homem, estamos praticando uma verdadeira religião.