O Conto “Amor”, contido no livro LAÇOS DE FAMÍLIA, de Clarisse Lispector.

Há momentos em que ficamos a lembrar, insistentemente, de uma frase ou música e nem sempre sabemos o porquê. A frase que insistia em ser lembrada dizia: “Quando o discípulo está pronto o mestre lhe aparece”. Nesse dia ganhei de presente o livro de Clarisse Lispector denominado “Laços de Família” e o primeiro conto que li chamava-se “Amor”. Nessa história, um cego mascando chicletes foi o mestre que provocou uma epifania, fazendo uma simples dona de casa sair do seu “mundo comum”e se confrontar com um “mundo especial” que só os heróis têm direito, na “hora perigosa da tarde”. Para se sair de uma “cegueira” torna-se necessário enxergar um algo significante que em meio à banalidade da vida possa ganhar significado. Assim o mestre de minha frase poderia ser qualquer coisa, mesmo um desconhecido que faz o seu papel sem nem sequer saber a quem está influenciando.

A autora escreve com aspirações marcadamente psicológicas. Estreou na literatura com um texto preocupado com as escavações das subjetividades humanas e manteve-se assim por quase todo o tempo de sua vida literária. Ela não fazia romances de cunho retratista e documental.

O conto traz uma personagem chamada Ana que trava um monólogo silencioso enquanto executa uma das tarefas do cotidiano: o de ir às compras e voltar para sua casa. Casada, dois filhos, tinha um viver tranquilo e fixo. A história começa com Ana subindo num bonde, com as suas compras em um saco de tricô. O saco de tricô, cheio de compras, apresentava-se deformado pela atividade repetitiva do dia-a-dia como a lhe lembrar de um esforço para conter tudo o que adquirira. Um dia as suas mãos tricotaram enlaçando fios, numa tentativa de fazer arte e construir algo que possa conter suas aspirações. Assim é a vida, cheia de conexões ligando e entrelaçando os fios da existência. Somos como as notas musicais. Sem as relações de umas com as outras não se ouvirá nenhuma música, e elas deixariam de ter sentido.

Ana cumpria um papel esperado pelas pessoas de sua relação, como quem se adapta à vida sem exigir nada para si mesma; ou o que dava para si mesma era muito pouco para permitir descobrir o seu talento. Talento é uma dádiva dos deuses que existe em todos nós, mas que fica escondido por traz das muralhas que construímos na ilusão de obter segurança e controle da vida. Ana não percebia o seu direito a uma existência com felicidade e amor. Tudo em seu redor se repetia. Poucas vezes notara que a natureza movimentava-se em sua volta, mas era de forma sutil, sem marcas e, de quando em vez, percebia que enquanto os filhos cresciam, o tempo a engolia.

O bonde, a vida de Ana, seguiam uma trajetória já traçada e apesar de entrar em ruas largas, só podiam seguir o caminho rígido imposto pelos trilhos. Num átimo ela observara um cego mascando chicletes. Sim, era um ato repetitivo de quem mastiga, até quando não mais existe doçura. Por alguma razão, essa imagem desencadeara em Ana uma “perigosa vontade de viver” que ela descobriu em si. Assim como os olhos não enxergam a si mesmos sem o auxílio de um espelho, nós também precisamos de um outro de nós mesmos que, como um espelho, possa fazer uma reflexão que nos possibilite enxergar nossa sabedoria interior, guardada no mundo das trevas. Jung tem uma frase que diz: “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta. “

À tarde, quando o dia ia morrendo, o bonde “vacilava nos trilhos”. Foi nesse momento que o cego a fez enxergar a si própria e tomar um conhecimento súbito da verdade. Ela se desequilibrou. O fim da tarde era também a hora instável, a hora do perigo para quem se joga para sair dos caminhos inflexíveis e pré-estabelecidos da vida e fazer o seu próprio caminho. Sair dos trilhos é também evitar cumprir um destino que não é o seu. É a chance de ter um inconsciente que consegue se realizar tornando-se parte da vida vivida e criativa. É no entardecer da existência que constatamos a necessidade de ter um significado para a morte e, assim, encontrarmos um sentido para a vida.

O cego fez o papel que Jung chamou de Função Transcendente. Ele trouxe esse conceito para designar uma função psíquica que aparece quando os dois lados de um conflito chegam a um nível tão intenso que essa função faz surgir um terceiro lado onde se pode encontrar a paz. Foi o cego que desencadeou em Ana a tal “perigosa vontade de viver”. Esse cego é o símbolo em que a Função Transcendente poderá atuar. No entanto, Ana não permitiu que houvesse a transformação. Teve medo e se acomodou como quem busca uma terceira perna, que embora empate caminhar, proporciona uma raiz firme para a estabilidade.

O mundo em volta pode se esconder no tempo e na aparente imutabilidade da vida de Ana.

Um dia notaremos que tudo se modificou. A pedra de Sísifo, no mito grego, faz trajetórias que se repetem indefinidamente como se todas fossem iguais. Isso muda caso se perceba a singularidade de cada trajeto. Quando os nossos dias são meras repetições de caminhos viciados, o livro que contará a história da nossa vida não precisará de mais de uma página. Perceber as mudanças sutis precisa de um espírito maduro e aventureiro, capaz de ativar as mudanças de uma semente que precisa realizar o seu destino, o que nada mais é do que descobrir o próprio talento.