O Brincar pode ser Arquetípico? Reflexões e Utilização na Psicoterapia

Iniciarei colocando o que Schillirò (1997)  diz a respeito desse tema de um modo bem interessante e amplo. A autora aborda o brincar como sendo uma necessidade psicológica, e, presente em diversas culturas.

Cita Heráclito, o qual afirma que: “A vida é uma criança que brinca”. E Platão,  considera os seres humanos como sendo o brinquedo dos deuses. Acrescenta que os jogos e as brincadeiras humanas seriam derivadas do divino. Ao ler sobre isso, me lembrei de um filme, no qual havia uma arena, com Teseu e outros gladiadores. No Olimpo, Zeus tinha uma miniatura dessa arena, com todos os elementos que haviam nela, e, Zeus com mais alguns deuses, creio que Afrodite também estava presente, moviam as peças, direcionando-as de acordo seus desejos.

Segundo Schillirò (1997), e demais autores, como Jung (1961/ 1975) , Winnicott (1985), Weinrie (1993) , Ammann (2002) e Jacoby (2010), o brincar é uma atividade plena de sentidos. É uma categoria do espírito que ultrapassa a liberação de uma tensão, de realizar um desejo, a compensação de uma unilateralização, ou a liberação de um impulso perigoso, pois encontra nele mesmo (o brincar) a razão de ser.

Winnicott (1985) denomina o espaço existente entre quem brinca e o brincar como “espaço potencial”, um espaço intermediário entre o objetivo e o subjetivo, entre o mundo interno e o externo, comum aos jogos infantis e aos da cultura. 

O brincar teria então um espaço imaginário, e um tempo diverso, não lógico. Quando a pessoa entra no espaço do brincar, ela abandona-se numa dimensão de prazer, de divertimento e expõe-se a uma precariedade, instabilidade e riscos. O brincar também pode ser perturbador, dando acesso aos enigmas do inconsciente, às suas figuras mais secretas e profundas. 

Semelhante aos contos de fadas, aos mitos, os quais falam de imagens coletivas, de fadas, bruxas, monstros e estas figuras “conversam” direto com nosso inconsciente. (Moreno, 2002).

Dentro do brincar existe uma gama rica de emoções, as quais podem ser expressões de aspectos da alma, da psique e dos afetos. No brincar existem diversas emoções, prazerosas ou não, pois nele estão presentes as preocupações, os medos, as angustias, a ansiedade, a incerteza e o risco. Brincar é criativo, e também pode representar os dramas interiores do indivíduo.

Brincar e imaginar parecem ser os instrumentos para dar forma às profundas emoções que habitam os silenciosos abismos da psique. Se considerarmos o brincar como sendo a chave do imaginário, ele então nos daria passagem às polaridades, às suas figuras contraditórias e as emoções nelas existentes.

Examinado a cultura do brincar, existentes em diversos ambientes diferentes, Schillirò (1997) levanta a hipótese da existência de “um arquétipo do brincar”, o qual pode estruturar e modelar a psique. Ela acrescenta o brincar como sendo ligado ao imaginário, precisando do corpo para a sua execução. A necessidade de brincar parece ser arquetipicamente determinada, tendo suas raízes na mente e no corpo, diz a autora.

Nos autores pesquisados vimos sempre a relação entre o brincar e a saúde psíquica. Huizinga (apud Schillirò, 1997) confirma, através de sua teoria, o que diversas abordagens psicológicas afirmam: a perda da capacidade de brincar indica um distúrbio psíquico.

Nos escritos de Jung (1919/1984), percebemos a atenção que ele dá ao brincar, considerando-o como um fio que une os instintos e os arquétipos. Os instintos estariam presentes na genética de todos os seres vivos, e os arquétipos estão presentes em todos os seres humanos.

O brincar é uma modalidade expressiva que está profundamente inscrita na psique, uma modalidade que jamais será superada, e, que de maneiras diversas acompanham toda a existência. Schillirò (1997) aponta que Freud também admite a possibilidade da existência de uma “pulsão de brincar”.

Em sua autobiografia, Jung (1961/1975) escreve que o brincar favorece a transformação e a criatividade. E relembra de como o brincar o ajudou a recuperar o seu equilíbrio psíquico num momento de grandes dificuldades, reconhecendo a importância do brincar na manutenção e no reencontro do equilíbrio psíquico (saúde psíquica). Ele considera que o brincar é muito importante para a economia psíquica e que o ser humano só é completo quando brinca.

O autor admite que o brincar seria um fator conectado tanto com a capacidade criativa do individuo, quanto com a possibilidade de abertura à transformação, sendo isto terapêutico por si só. E parece considerar a experiência lúdica como um instrumento que possibilita uma ligação do mental que estaria radicado numa predisposição arquetípica.

A partir dessas premissas, Schillirò (1997) retoma a hipótese do “arquétipo do brincar”, como sendo uma predisposição psíquica à atuação dos comportamentos lúdicos, sendo estes necessários à manutenção da saúde psíquica. Este arquétipo estaria à serviço do processo de transformação, através do qual a psique se remodela continuamente a si própria, curando suas feridas e amenizando o crescimento das mesmas.

O individuo que brinca, ativa a potencialidade criativa do Self, o qual geralmente pode curar e transformar, pois constela as forças transformadoras e curadoras das quais necessita para a realização de seu projeto de vida. Assim como favorece o re-equilibrio do eixo Ego-Self. O brincar relembra o divino, pois possui um aspecto criador, de religação e de criador de si próprio.

A criatividade do Self realiza no brincar, aquela obra de reintegração psíquica a qual confere ao brincar um valor espiritual, de união, e que consiste o fim último do jogador. (Jung (1961/1975), Weinrie (1993), Schillirò (1997), Ammann (2002).

Ao brincar, o individuo cria e recria o mundo, ordena o caos e se recria a si mesmo. Porém no espaço transacional entre o criar e o brincar, há a possibilidade de surgirem imagens internas dos daimones, e nesse momento o individuo precisaria conversar com as imagens, tentando integrá-las, para não serem tragadas pelas mesmas.

A criança, quando ainda não consegue expressar verbalmente as suas emoções, utiliza o brincar para comunica-las, pois ainda precisa da corporeidade do objeto e da ação para expressar-se. O adulto, em momentos de desorientação em relação as suas emoções, necessita de uma espécie de regressão, e ir ao lúdico, aos gestos, ao brincar como uma forma de reorganização psíquica.

O espaço do brincar é um espaço do simbólico, um lugar no qual as emoções podem encontrar suas representações e serem elaboradas. É aqui , neste espaço, que a mistura de elementos pessoais e arquetípicos podem encontrar uma forma de não destruir o Ego, porém guiando-o para as mudanças.

O brincar é uma modalidade expressiva que está profundamente inscrita na psique, uma modalidade que jamais será superada, e, que de maneiras diversas, acompanham toda a existência do indivíduo.

Finalizando , gostaria de citar um parágrafo que Jung escreveu em seu livro: Memórias, Sonhos e Reflexões (1961/1975):

“Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar as imagens que se ocultavam nas emoções, eu readquiria a paz interior. Se tivesse permanecido no plano da emoção, possivelmente eu teria sido dilacerado pelos conteúdos do inconsciente. Ou, talvez, se os tivesse reprimido, seria fatalmente vítima de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico, tornar consciente as imagens que residem por detrás das emoções.” (p.158).

Prof.ª Dra. M.ª  Teresa Nappi Moreno – Analista IJEP

REFERÊNCIAS:

AMMANN, R. A terapia do jogo de areia: imagens que curam a alma e desenvolvem a personalidade. São Paulo: Paulus, 2002.

JACOBY, M. Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças: padrões básicos de intercâmbio emocional. São Paulo: Paulus, 2010.

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. (Original publicado em 1961)

Instinto e inconsciente. In: A dinâmica do Inconsciente. Vol. VIII, O.C. de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1984. (Original publicado em 1919)

Determinantes psicológicas do comportamento humano. In: A dinâmica do Inconsciente. Vol. VIII, OC de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1984. (Original publicado em 1937)

MORENO, M.T.N. A Bela Adormecida e a adolescência: um enfoque junguiano. São Paulo: Vetor, 2002.

SCHILLIRÓ, C. LArchetipo del Gioco. La funzione del gioco nella transformazione e nella cura della psyche. In: MONTECHI, F. (Org.) Il “gioco dela sabbia” nella pratica analitica. Milano: Franco Angeli, 1997.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

WEINRIE, E. L. Imagens do Self: o processo terapêutico na caixa de areia. São Paulo: Summus 1993.