Licença para Morrer

Em função do excesso de disponibilidade tecnológica e pela necessidade de lucro e voracidade competitiva da indústria médica da atual sociedade de consumo, o processo de morte passou a ser um grande negócio. Por isso, quanto mais recursos econômicos o doente terminal tiver, mais dias de sofrimento ele e seu entorno relacional terá até que seja expedida sua licença de morrer. Esse procedimento é chamado de distanásia – a morte sem dignidade, com excesso de abusos e interferências.

A experiência da morte, que deveria ser compreendida e encarada como fato inexorável e natural, um evento de transformação individual e social igual e proporcional ao nascimento, acabou virando comércio rentável na mão dos inescrupulosos cientistas que se preocupam apenas com bíos, a manutenção da vida biológica, sem reconhecerem que existe zoé, a vida espiritual e psíquica que aspira continuar seu caminho evolutivo. Zoé, da tradição mítica greco-romana, é subjacente a toda expressão de bíos, que é destrutível e finita.

Negar ou temer a morte é equivalente a negar ou temer a vida, pois a vida em sua plenitude depende da contínua experiência de morte, com todo seu amargor e doçura paradoxal, intrigante, prazerosa, indefinível e fugaz como o orgasmo. Por isso, psicossomaticamente, compreendemos que os sintomas de adoecimento são os gritos de zoé tentando chamar a atenção do bíos, ou seja, a dinâmica psíquica ou anímica exigindo que a instância somática e mental se comprometa e passe a servir a vida do que não morre, como Jesus, Dioniso e outras expressões divinas que são indestrutíveis e mantinham o contínuo vínculo dialético com a morte.

Para revertermos esse padrão de negar zoé precisamos sair da inércia mental. Porque nosso ego consciência, na maioria das vezes, está condicionado e soldado na bíos, sofrendo as dores do corpo e temendo a finitude somática, por saber que também será a sua. Aliado a isso temos a ciência e a tecnologia que contribuem ainda mais para a ilusão do poder sobre a morte de bíos, gerando lucros crescentes, alimentando a contínua roda do capitalismo que não pode parar. Mas só sairá da inércia quem encontrar fé em zoé, reconhecendo o sagrado em si mesmo, para depois reconhecer no outro.

Enquanto isso, a indústria desta medicina da sociedade de consumo continuará arbitrando sobre a morte, num crescente faturamento e, se dependermos dela, isso nunca terá fim, pois conscientemente, neste paradigma de poder, lucro e acúmulo, ninguém é capaz de tomar uma atitude que implica em menos faturamento e lucro no futuro. Por isso não existe investimento na salutogênese, na homeopatia, no conhecimento e prática da psicossomática, ente outras abordagens que vê o homem de forma integral e não como um negócio biológico que não pode morrer natural e livremente, pois a ortanásia – a morte natural e serena – não dá lucro.