Seria o cinema apenas entretenimento, um fenômeno da cultura de massas ou poderia ser considerado verdadeiramente arte? Qualquer que seja a resposta, assistimos crescer a tentativa de compreender o cinema a partir de uma visão psicológica sobre essa grande fusão de tecnologia, arte, pedagogia e filosofia. Hoje podemos até arriscar falar em uma psicologia do cinema.

C.G. Jung, médico, psiquiatra e grande pensador suíço do século passado, trouxe importantes contribuições para a abordagem da arte, com sua proposta de compreender a psique através das figuras da imaginação e não apenas pelas palavras. Sua concepção sobre arquétipos fala de modelos pré-existentes na psique, permitindo aos humanos viverem suas experiências paradoxalmente criativas e previsíveis. Então, pode-se notar que existe um padrão universal e transcultural na psicologia do desenvolvimento humano, sem impedir a singularidade e a criatividade presentes em cada indivíduo. Isto porque os arquétipos, reveladores de profundas verdades individuais e coletivas, podem ser vivenciados de inúmeras formas e expressos em infinitas imagens, com poderes transformadores, chamados por Jung de símbolos. Percebemos ao longo dos tempos que os humanos valeram-se de mitos, contos de fadas, lendas e folclore, recheados de imagens arquetípicas, que preservam os mistérios de vida, transmitindo valores éticos por meio de experiências estéticas.

Com isso, as imagens trazidas pelo cinema podem conduzir o poder transformador dessa verdade mais profunda que não seria atingida por palavras. Por exemplo, o mito do herói, talvez o mais presente no mundo cinematográfico, nos ensina a incorporar habilidades inovadoras e vencer obstáculos que, em um primeiro momento, parecem intransponíveis. Por isso, Neo, o herói de Matrix, é um jovem levado a desafiar a ordem que destrói a individualidade e este seria um padrão arquetípico do comportamento humano.

Podemos ilustrar também com Big Fish, um dos maravilhosos filmes de Tim Burton: Um contador de histórias, Edward Bloom, está prestes a morrer de câncer. Ele vive com a mulher, Sandra, e tem um filho, Will, que após três anos afastado de casa é chamado pela mãe. O filho é um jornalista que se interessa apenas por fatos, daí sua incompatibilidade com o pai, um homem que vive muitas possibilidades heróicas através das histórias que conta em busca de minimizar a crueldade de sua realidade. Assim, ao contatar sua realidade para (re)contá-la em histórias, ensina lições sábias que jamais teriam sido alcançadas se, como o filho, apenas narrasse fatos.

Big Fish é como a vida – Há pessoas que se agarram ao concreto e outras põem ênfase no sentido oculto das coisas, aproximando-se destas, de antemão, com uma disposição simbólica. É através dos símbolos que damos sentido ao existir. Para Campbell, um grande antropólogo do século, todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir quem somos. Os mitos nos oferecem essa chance. Foi assim no filme de Tim Burton; o morrer de Edward Bloom foi sustentado pelo mito criado por ele e reproduzido maravilhosamente pelo filho, em sua hora derradeira.

O filme traz idéias sobre a importância dos mitos, que se assemelham ao pensamento junguiano e que podem ser resumidas em algumas de suas frases destacadas a seguir: “Impossível separar o homem do mito”, “O maior peixe do rio cresce tanto, porque nunca é pego”, “Qualquer caminho fica mais perigoso no escuro”, “Quando conhecemos o amor das nossas vidas o tempo pára”, “Muitos maus e ferozes são apenas solitários e sem traquejo social”, “O destino sabe como envolver um homem e pegá-lo de surpresa”, “Um homem conta tantas vezes sua história, que se torna uma delas; elas continuam vivendo após ele e, deste modo, ele se torna imortal”.

Apesar de reconhecermos que é preciso ter cautela para não reduzir a arte à ciência, com essa psicologia do cinema propomos aqui uma outra maneira da arte nos servir.