Jung e a Psicopatologia

Porque Jung não estruturou uma teoria psicopatológica própria como fizera Freud?

Num perpassar de olhos pelos volumes das obras completas do Jung vemos que ele não escreveu textos dedicados propriamente a uma Psicopatologia analítica, embora fale o tempo todo dos processos psíquicos normais e patológicos e os analise em profundidade, contextualizando-os em enfoques pessoais e coletivos. Mas, ao que tudo, indica, Jung não tinha a preocupação de estruturar um conhecimento psicopatológico ao seu modo por alguns motivos que passamos a listar. Primeiro, Jung não acreditava na universalidade das teorias de Freud e Adler, e ,embora as considerasse muito pertinentes e aplicáveis no tratamento de vários pacientes, não achava que elas respondiam a todas as questões da alma humana. No excerto abaixo ele se posiciona sobre tal questão:

“Nossa experiência psicológica ainda é nova e pouco extensa para permitir teorias universais. É preciso pesquisar primeiro uma quantidade de fatos, para aclarar a natureza da alma, antes de pensar sequer em estabelecer proposições de validade universal”. (JUNG, 2013, p.131)

Em segundo lugar, ressalte-se que Jung também não entendia que os diagnósticos psicopatológicos pudessem guiar os tratamentos psicológicos, podendo até funcionar como empecilho, pois funcionariam como literalizações que, tomadas hermeticamente, poderiam apenas engessar o entendimento do caso, enviesando-o exclusivamente por um olhar nominalista. Assimele se explicava:

“Em psicoterapia o reconhecimento da doença depende muito menos do quadro clínico da enfermidade do que dos complexos nela contidos.”(…) “um diagnóstico seguro é  bom para o clínico ,e  vale a  pena  consegui-lo ,mas  para um psicoterapeuta  é  muito melhor que  conheça o menos  possível de  um diagnóstico específico.”   (JUNG;2013 p. 102).

Por fim, é importante frisar que Jung dizia que as teorias eram apenas meios auxiliares de entendimento e não poderiam abarcar a imensidão da alma humana.

“As teorias são inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares. Assim que se transformam em dogma quer dizer que uma dúvida interna está sendo abafada. É necessário um grande número de pontos de vista teóricos, para produzir, ainda que aproximadamente, uma imagem da multiplicidade da alma. A unificação poderia significar apenas unilateralidade e esvaziamento. A psique não pode ser apreendida numa teoria, tampouco o mundo” (JUNG,2013  16/1 p. 103)

Consoante Jung, é muito mais  interessante  deixar-se  aberto ao que  se nos apresenta na  alma  do paciente , numa perspectiva ao mesmo tempo de permeabilidade  como também de  insegurança, permitindo-nos  não entender  por  completo o que se passa na psique do paciente, deixando que  a  relação analista/ paciente se  desenvolva  num terreno de  entrega ao que  o patológico e  a alma do paciente querem expressar.

Como a psicologia  junguiana  tem um olhar  de  Jano (deus grego de  duas  faces,uma voltada  para trás e outra para frente), ele está  interessado sim nas  causas do sofrimento humano,mas  também olha  este  sofrimento teleologicamente , ou seja, pergunta ao sofrimento para onde ele o guia e  o que  quer dele. Não só o porque, mas  o para que  dos sintomas e  padecimentos .

James Hilmann, através de sua psicologia arquetípica amplia e aprofunda esta questão ao dizer que a psique   humana não vive sem patologizar. Para ele o patologizar é uma das essências arquetípicas da psique humana, pois é através do patologizar que somos confrontados com a possibilidade de   arrancar nosso ego de sua zona de conforto, levando-o a níveis de confusão e desorganização que poderão dar voz a novos atores internos que propiciarão novos entendimentos e ampliação de consciência.

“O patologizar  liberta  a alma  de  sua  identidade  com o ego e  com os heróis  de  luz  do mundo  superior, assim como com o santos  deuses  que  fornecem ao ego seus  modelos ,e  que  tem lançado nossa consciência  numa estreiteza unilateral e  supressiva com relação à vida , à  saúde  e  à  natureza (…)O patologizar  força a  alma para  uma  consciência de si mesma diferente  do ego e  sua  vida.”(HILMANN,2010,p.192)

Fica claro então que precisamos da essência patologizante da psique para fazermos o que Hilmann costuma chamar de “Soul making”, algo como cultivar ou fazer alma. Na medida em que compreendemos e aceitamos esta tendência natural (arquetípica) da psique de fazer doenças, navegamos por entre os significados psicológicos e mitológicos deste processo e nesta “nau dos insensatos “poderemos nos encontrar com nossos destinos mais recônditos, fazendo alma em suas águas revoltas, mas que podem também nos levar a praias límpidas e reconfortantes.

Nas patologias se escondem motivos mitológicos. Diz Hilmann que “patologizar é mitologizar “(HILMANN 2010.p.210) em consonância com o que dizia Jung:” Os deuses tornaram-se doenças; Zeus já não rege o Olimpo, mas sim o plexo solar,e fornece curiosas espécies para o consultório médico”(JUNG apud HILMANN 2010, p.217).

Neste contexto, entendemos como uma estruturação teórica (psicopatologia) não interessava a Jung. Ele estava, antes de tudo interessado em conhecer e vivenciar a alma humana em plenitude e desta forma não poderia se orientar por classificações e teorias que pudessem funcionar como dogmas. Antes, Jung nos convida a estudar e conhecer as mitologias, não para nos classificarmos em mitos específicos (que acabaria se constituindo numa “psicopatologia mítica “), mas sim procurar compreender como os mitos, que são as origens arquetípicas de nossos sofrimentos, nos atingem e nos atravessam.

Se os deuses estão nas doenças, precisamos enxergar seu lado divino e não apenas o diabólico, como assaz costumamos fazer. A tratamento de psicopatologias não pode ser a pura e simples extirpação do patológico, separando-o da alma. A Alma  é tudo, inclusive suas concepções patologizantes, que  precisam ser integradas para que  causem menos sofrimento e cisão interna .A linguagem do patológico não é  reta e clara , ele fala por  metáforas e símbolos , como esclarece Hilmann “A  psique  se utiliza  de  queixas para  falar  de  suas profundezas  numa linguagem magnífica  e  distorcida”  ( HILMANN 2010 ,p.178)

Nesta perspectiva , percebemos que estudar “psicopatologia Junguiana ” é perscrutar a alma humana em tudo que ela se  nos  apresenta: seus sonhos ,fantasias ,medos ,patologias , ou seja , todo o seu processo imaginativo , buscando dar voz  a todos os  deuses que  habitam nosso Olimpo pessoal olhando através deles para  trás  e para frente , como fazia o sábio deus Janus.

REFERÊNCIAS

HILMANN,J.- Re-vendo a psicologia .Ed.Vozes .Petrópolis .2010

JUNG,C.G – A prática da  psicoterapia .Ed .Vozes.Petrópolis . 2013

Luiz Humberto Carrijo dos Santos. Médico psiquiatra. Especialista em Psicologia  Junguiana  pelo IJEP. Analista Junguiano em formação.

Consultório: Rua dos  Girassóis 180 . Bairro Cidade Jardim. Uberlândia -MG. luizhcarrijo@gmail.com