Jung e a Criatividade no Mundo Contemporâneo

Na década de 30, Freud escreveu sobre o mal estar da modernidade, a angústia do homem frente ao mundo prometeico, sólido, ordenado, estável e seguro. O perfeito mundo moderno era aquele no qual o homem racional tinha o máximo de controle possível. Para Freud, o mal-estar vinha precisamente da limitação da liberdade de seguir as pulsões da libido em troca de mais segurança ante a ameaça inerente à fragilidade do corpo, a agressividade do mundo e dos vizinhos.

Hoje os tempos mudaram. Estamos no admirável século XXI, tempo de insegurança e inquietação. Para Bauman (1998), a solidez da estrutura da ordem moderna, em que as ações humanas podiam encontrar certezas e portos seguros, deslocam-se para a pós-moderna sensação flutuante de ser. O sujeito da pos-modernidade trocou parte de sua segurança por mais felicidade, e os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma liberdade na procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena. A pós-modernidade faz do espelho um objeto necessário ao nosso reconhecimento e impede que nos encontremos. Navegando e podendo se afogar na fluidez do mundo liquido, o homem pode sentir agudamente a insuficiência de se manter frente à banalização das experiências. O mal estar hoje é o vazio existencial

Para Jung, a neurose contemporânea instala-se quando o sujeito se contenta com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vida, quando não consegue encontrar significado para o existir. Se tem condições para ampliar e desenvolver personalidades mais abrangentes sua neurose costuma desaparecer.

Faço a pergunta a você e a mim: Qual é o propósito maior de sua vida?

Jung nos oferece um mito para o homem do século XX e XXI. Cada um de nós tem a responsabilidade ética e moral consigo e com a sociedade de encontrar e dar sentido à própria vida; ou seja, construir e viver seu próprio mito. E foi o que ele fez….

Em memórias, sonhos e reflexões, o seu livro autobiográfico, Jung (1981) nos conta, do alto dos seus oitenta e três anos “Em última análise, só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida através dos quais o mundo eterno irrompe no mundo efêmero. Por isso falo principalmente das experiências interiores. Entre elas figuram meus sonhos e fantasias, que constituíram a matéria original de meu trabalho científico…Foram como que uma lava ardente e líquida a partir da qual se cristaliza a rocha que eu devia talhar.”

Essa lava ardente, a energia criativa presente em Jung e que foi a responsável pela sua vida e obra, está presente em todos nós. Na Grécia antiga ela era chamada de daimon, “um poder divino residente que energiza os seres humanos com extraordinário entusiasmo”. O nosso daimon, que geralmente se revela na infância (daí a importância da pedagogia e da família poderem observar melhor as sua crianças), é uma singularidade invisível, como uma centelha, uma semente, que existe dentro de nós e que pede para ser vivida, nos chamando a criar.

Deixar a semente virar árvore é um processo de diferenciação psicológica, inato, que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual. Foi chamado por Jung de processo de individuação. Esse processo exerce sobre nós um grande fascínio, de nos tornarmos aquilo que somos, o que nos impele à realização pessoal e autonomia em relação ao mundo. A individuação, portanto, significa tornar-se um in-dividuum, i.e., um ser único, indiviso, não-atomizável.

Esse processo criativo de desenvolvimento humano, que está no centro da teoria junguiana propõe um religare, ligar-se novamente, unindo-se às raizes inconscientes da própria individualidade. Capacidade de curvar-se às próprias raízes, que contêm em seu interior as sementes do desenvolvimento futuro da identidade pofunda, sempre em transformação, tanto do indivíduo, quanto da sociedade e da cultura.

É um caminho de conexão com as nossas potencialidades criativas necessárias à realização humana plena. A individuação é um processo criativo de desenvolvimento da inteligência intrapessoal, demandando o domínio de quatro artes: O autodomínio, o autoconhecimento, a amorosidade e a transcendência.

James Hillman denomina “criatividade psicológica” o cultivo da alma, objetivo maior da terapia. A alma, para Jung (1991), corresponde à nossa personalidade interna, que faz relação com os processos psíquicos internos (inconsciente). Representa o âmago do nosso ser, a essência mais profunda da nossa personalidade.

O cultivo da alma é um processo semelhante à jardinagem. Para que a nossa semente torne-se árvore precisamos deixar as coisas acontecerem, respeitando a natureza. As sementes da transformação encontram-se no ato de ver nossa realidade com mais clareza, sem preconceitos nem julgamentos. É preciso criar espaços receptivos. É preciso criar confiança. Calar a voz do julgamento de si e dos outros é permitir que aflorem possibilidades que ninguém antes havia vislumbrado.

Mesmo sendo a situação analítica um espaço privilegiado para a individuação, ela não é a única. A melhor análise é a vida. Atualmente partimos da ideia que o processo de individuação não deve ser realizado apenas de forma solitária, mas grupal, em um local que reúna pessoas com o propósito de realizar a opus (termo alquímico utilizado para referir-se à individuação). Dessa forma, a psicologia junguiana pode ser utilizada em diversos contextos extra-clínicos (pedagógicos, organizacionais, equipes, etc).

James Hillman propõe que a psicoterapia junguiana atravesse o rio em direção às ruas. A psicologia analítica deve deixar os consultórios e situar-se mais genericamente na vida. O mundo inteiro pode transformar-se em nosso consultório.

Essa é a proposta. Caminharmos em direção ao encontro de nós, onde a fé, a esperança, a caridade, a amorosidade da troca e a busca do encontro mutuamente frutificado existam em harmonia.

Ermelinda Ganem Fernandes

Doutora e Mestra em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC/PPEGC). Médica e psicoterapeuta junguiana. Coordena o curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) no IJBA.

Referências:

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.