Grupos vivenciais junguianos

Na década de 30, Freud escreveu sobre o mal estar da modernidade, a angústia do homem frente ao mundo prometeico, sólido, ordenado, estável e seguro. O perfeito mundo moderno era aquele no qual o homem racional tinha o máximo de controle possível. Para Freud, o mal-estar vinha precisamente da limitação da liberdade de seguir as pulsões da libido em troca de mais segurança ante a ameaça inerente à fragilidade do corpo, a agressividade do mundo e dos vizinhos.

Hoje os tempos mudaram. Estamos no admirável século XXI, tempo de insegurança e inquietação. Para Bauman, a solidez da estrutura da ordem moderna, em que as ações humanas podiam encontrar certezas e portos seguros, deslocam-se para a pós-moderna sensação flutuante de ser. O sujeito da pos-modernidade trocou parte de sua segurança por mais felicidade, e os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma liberdade na procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena. A pós-modernidade faz do espelho um objeto necessário ao nosso reconhecimento e impede que nos encontremos. Navegando e podendo se afogar na fluidez do mundo liquido, o homem pode sentir agudamente a insuficiência de se manter frente à banalização das experiências. O mal estar hoje é o vazio existencial

Para Jung, a neurose contemporânea instala-se quando o sujeito se contenta com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vida, quando não consegue encontrar significado para o existir. Se tem condições para ampliar e desenvolver personalidades mais abrangentes sua neurose constuma desaparecer.

Mesmo sendo a situação analítica um espaço privilegiado para a individuação (processo de autoconhecimento que visa nos tornamos aquilo que somos), ela não é a única. A melhor análise é a vida. Atualmente partimos da idéia que o processo de individuação não deve ser realizado apenas de forma solitária (no ambiente da análise individual), mas grupal, em um local que reúna pessoas com o propósito de realizar a opus (termo alquímico utilizado para referir-se à individuação).

Alguns autores junguianos (Whitmont, Stein, dentre outros) tem ressaltado que explorar o inconsciente, em sua manifestação numa experiência grupal, é tão importante quanto experienciá-lo pela introversão através de sonhos ou imaginação ativa,

Grupos vivenciais-terapêuticos junguianos – círculos de iniciação

Mas o que é um grupo vivencial-terapêutico junguiano?

Os grupos vivenciais junguianos são pequenos grupos criativos, de aprendizagem compartilhada, que partem de um estado de não saber, se utilizando dos símbolos para propiciar a transformação individual através dos relacionamentos interpessoais. Ocorre a utilização da intuição e da imaginação, as pessoas articulando conhecimento do nível pré-verbal para a comunicação verbal; o diálogo é concebido como um princípio norteador e conciliador das diferenças humanas.

Esses grupos são considerados como redes de significados, que são tecidas pelas conversações arquetípicas dos sujeitos, intrapessoalmente (consigo mesmo) ou interpessoalmente (com outros sujeitos), sendo que o símbolo é o mediador, que interconecta os espaços de conversa, promovendo o compartilhamento e representação do conhecimento tácito (inconsciente) através dos processos de empatia.

O grupo se configura como uma “galeria de espelhos”, onde cada pessoa pode se ver refletida na outra (não só no terapeuta). O sujeito é descentrado, o acento recaindo para a relacão e a busca pela alteridade. A partir dela cada um poderá afirmar e confirmar o outro, ambos beneficiando-se com a troca. O potencial criativo da vivência, assim como o da multiplicação de diálogos e interações assim concebidos, talvez seja a maior vantagem dos grupos vivenciais.

O trabalho em grupo permite inúmeras possibilidades, dependendo do objetivo proposto e do que se constele no campo interacional. Há uma oportunidade, compartilhada, de ensaiar personas, de pôr em movimento a totalidade psíquica e, quem sabe, de criar novas personas em nível social, o que dá certo suporte à personalidade para que, em outros contextos, o indivíduo possa explorar novos meios de reflexão e expressão de seus próprios símbolos e dos que se apresentem no âmbito coletivo, em cada situação.

O formato dos grupos junguianos é circular. O círculo é um princípio e também uma forma. Ele age contra a ordem social, a compartimentação superior/inferior, a hierarquia que compara um indivíduo ao outro. Sentados em círculo, cada um de nós tem uma posição espacial que é igual aos outros. Cada um assume sua vez e o Círculo gira, nós falamos e somos ouvidos. De fato, nos grupos circulares não há hierarquia, conquanto seja necessário existir um indivíduo focalizador (o terapeuta), responsável pelo desenvolvimento e condução dos encontros. Cada pessoa se conecta com o seu próprio centro e com o centro do Círculo e percebe-se tanto como um raio da roda, quanto como o aro.

Há um processo iniciático, que é constelado quando o indivíduo entra num grupo vivencial junguiano. A finalidade desse processo iniciático é possibilitar que o indivíduo saia da periferia da sua personalidade, da identificação com o ego, para ir ao encontro, cada vez mais profundo consigo mesmo, com a sua alma, com o seu centro interno.

Nos grupos junguianos honramos a deusa grega Héstia, o fogo sagrado, associada à casa, ao lar, lugar de repouso, reabastecimento, intimidade e apropriação da identidade. Sob a constelação de Héstia, há um espaço adequado para a vivência simbólica. O verbo preponderante é “estar”: mais do que fazer ou ser algo, basta estar e deixar as coisas acontecerem (fenomenologia coletiva). O espaço, assim, torna-se ambiente psicológico, ganha alma, passando a constituir o palco para a interação e harmonização de forças díspares e dinâmicas.

Em um grupo vivencial podemos oferecer diferentes linguagens para a expressão dos símbolos, como por exemplo: desenho; modelagem; palavras; gestualidade; O uso de recursos expressivos na abordagem junguiana compreende que o clima coeso, continente e acolhedor, próprio ao contexto vivencial grupal, permite um movimento psíquico de focalização flutuante, propício ao intercâmbio entre consciência e inconsciente.

Concluímos, assim, que o terapeuta junguiano, tanto a nível individual como grupal, deve realizar a “psico-logia” no verdadeiro sentido da palavra (logos da psique), ou seja, desenvolver a capacidade de ouvir o que as imagens estão a nos dizer. Ele deve procurar procurar compreender as histórias que os clientes contam – os discursos da alma através das imagens. Só assim poderá acessar o verdadeiro conhecimento, aquele que está no coração.

Ermelinda Ganem Fernandes – Doutora e Mestra em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC/PPEGC). Médica e psicoterapeuta junguiana. Coordena o curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) no IJBA.