Dorival Caymmi – O Mar e o Tempo

Stella Caymmi produziu no livro Dorival Caymmi – o mar e o tempo um completo panorama sobre a obra do avô, centenário em 2014. Nele aparecem o modo e a qualidade como o artista viveu a vida em sua maneira de sentir o tempo. Como amou sua terra e criou sua obra. Em uma de suas passagens, Caymmi nos diz: “O tempo é ligeireza, é repouso, é pra dar preguiça. Não é para passar só. O passar nele é natural. Eu mesmo me tachei de preguiçoso e achei uma fórmula bonita de não me chatear”.

A poesia que o mar canta, tem em Caymmi o seu tradutor que faz do ritmo das ondas as músicas que exprimem os mistérios do mar. Os pescadores, com a imagem de João Valentão, descrevem o universo mágico desses homens que nunca precisam dormir para sonhar.  Caem no samba de minha terra e descobrem o que é que a baiana tem. A baiana de Caymmi, como as outras mulheres que ele canta, são sensuais e mexem com os homens. Assim são as influências das musas como Dora que nasceu na solidão de uma madrugada depois de tê-la visto dançando um frevo.

A criação de um poeta tem um segredo que a psicologia não pode explicar. É como os nossos sonhos, nós não o interpretamos pelo risco de se falar do que não se sabe, mas procuramos evocar as emoções para entendermos algo de pessoal e impessoal naquele que sonhou ou criou uma obra prima.

Para Jung a criatividade é um instinto inato que se apodera do homem e faz dele seu instrumento. Por isso o artista é, no mais alto sentido, um homem coletivo, um veículo e um modelador da vida psíquica inconsciente da humanidade. A escritora Virginia Woolf lembra que o ritmo é o mais profundo e primitivo dos instintos. Eliot, Nobel de literatura, disse que a poesia começa com um selvagem batendo tambor numa floresta.

O processo criativo se manifesta pela função simbólica da psique a que Jung denominou “Função Transcendente”. Um conceito que traduz aquele momento que saímos de uma condição em que tínhamos um sentimento de estar vivendo situações opostas e, nossa consciência nos faz perceber como irreconciliáveis. É ai que surge um símbolo que relaciona esses aspectos numa unidade funcional. João Valentão, por exemplo, é o homem que vive o tempo de Chronos durante o dia, ao fazer um trabalho exaustivo embaixo do sol e imposto pela responsabilidade. Depois vive o tempo de Kairós e desfruta o gostoso da vida como diz o verso: “É quando o cansaço da lida da vida obriga João se sentar. É quando a morena se encolhe, se chega pro lado querendo agradar”.

O tempo era para os antigos gregos, definidos em duas qualidades: Chronos e Kairós. É como dizia o saudoso Rubem Alves: “O tempo pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração”. Chronos é o “tempo das batidas do relógio”, a marca implacável que fatia nossas vidas em anos, dias, horas e suas divisões. É linear. Enquanto Kairós é o tempo não linear que dá sentido à vida e se mede “com as batidas do coração”. É quando surge a exaltação encantada da criação poética e se acrescenta qualidade boa de vida aos anos.

Chronos, na mitologia, era um deus que devorava seus filhos. Até que Zeus, um de seus filhos, faz a sua castração e lhe tira o poder da fertilidade e nada mais pôde ser criado. É, portanto, o tempo das angustias, dos prazos a cumprir e de um corpo que realiza o seu destino de se dissolver no cosmos. Enquanto Kairós, seu filho mais novo, nos deixa experimentar a vida criativa com uma alma que se expressa em suas múltiplas formas de manifestação. Esse é o tempo em que as nove musas da mitologia, filhas de Mnemosine, a deusa da memória, fazem com que os homens se “lembrem”, em seus cantos e poemas, de suas vidas como deuses quando elas os entretinham dançando no Olimpo.

Na criação da música “João Valentão”, Caymmi chega no verso: “Se a noite é de lua; a vontade é contar mentira, é se espreguiçar. Deitar na areia da praia; que acaba onde a vista não pode alcançar” e para aí. Ele conta: “Pois bem, isso durou nove anos, tempo que não se sentiu. Tempo não é pra fazer sofrer” até o dia em que viajava no bonde do Grajaú e sua amiga Aracy de Almeida, num dia de bom humor, lhe chamou a atenção por ele não ouvir o seu chamado. Nesse momento, Caymmi escutava em seu universo interior o resto dos versos que faltavam para concluir a música: “E assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há”.

Não estamos levando a poesia de Caymmi ao Divã.  Não poderemos reduzir a expressão do poeta a uma compensação da consciência pessoal, pois ela se alicerça na alma da humanidade. No entanto, o artista que vive o tempo de Kairós tem o seu lado humano de Chronos comprometido em benefício do lado criador e, por isso, parece que vegeta num nível de preguiça e negligência. É como diz Jung: “São raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divina de sua capacidade genial. É como se cada ser humano nascesse com um capital limitado de energia vital”.

Precisamos aprender a não valorizar apenas as notas emitidas durante a execução da música da vida, mas também o silêncio entre elas, pois a melodia resultante dessa forma de relação é que torna possível o verdadeiro sentido da existência.