Coronavírus e transição humana

São 15:30h de uma quinta-feira em Itatim, no interior da Bahia, e o posto de saúde está surpreendentemente pacato. Os senhores e senhorinhas hipertensos e diabéticos preferiram ser atendidos pela manhã, bem como aqueles que tinham alguma urgência ou demanda mais recente. Muitos estão assustados com essa tal “doença que circula por aí” e felizmente atenderam as orientações de permanecer em casa. Enquanto isso, na Itália, 427 mortes no dia eram registradas por conta do coronavírus, ultrapassando a China em mortalidade.

No final de dezembro de 2019, quando médicos e jornalistas chineses procuraram alertar as autoridades e serviços de saúde sobre o risco iminente de epidemia por um novo coronavírus, os mesmos foram inicialmente censurados pelo Partido Comunista Chinês, que controlou o fluxo de informações e minimizou o risco de surtos. Tal como a SARS em 2002, a resposta concisa só veio tardiamente e após apelos da comunidade internacional.

A epidemia do SARS-CoV-2, antes restrita à China, alastrou-se então pelo mundo a partir de janeiro desse ano, em uma velocidade impressionante, fazendo jus prático (e não falacioso) ao conceito de globalização.

Em tempos de inteligência artificial, explorações espaciais, engenharia genética, cirurgias robóticas e desenvolvimento de tecnologias que possibilitam uma autossuficiência cada vez maior, quem diria que um agente microscópico e acelular nos faria “cair do cavalo” nessa magnitude? Um vírus, em sua simplicidade mais irrisória, parece nos lembrar da nossa insignificância nesse Universo, mas também resgatar o que ainda há de humanidade em nós.

O coronavírus é velho conhecido, sendo identificado pela primeira vez em meados da década de 60. Existem vários tipos, sendo que quase todos infectam animais (notadamente mamíferos, como morcegos, roedores, gatos, cachorros e macacos), mas apenas dois que (até então) infectavam seres humanos de modo grave: SARS-CoV-1 (responsável pela epidemia que matou cerca de 800 pessoas em 2002-2003) e MERS-CoV (agente da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que matou pouco mais de 750 indivíduos em 2018). A falta de condições sanitárias de um mercado popular em Wuhan foi fundamental para o estopim da nova epidemia, de modo que o hábito alimentar de comer animais silvestres, aliado ao surgimento de uma mutação viral, tornaram possível a transmissão horizontal pessoa a pessoa. O vírus, antes confinado a algum animal silvestre da feira livre, então passou a poder circular indiscriminadamente.

A palavra mutação vem do latim mutare/mutatio, que significa mudar ou alterar.  A suspeita é que algum fenômeno dessa natureza tenha ocorrido na constituição genética do vírus, que possui esse nome por conta das espículas presentes em sua superfície, o que lhe dá a aparência de uma coroa solar (corona em latim).

Trocando em miúdos, alguma base nitrogenada trocada aqui ou acolá em um RNA viral, na China, fez com que dona Maria Joana, 62 anos, mãe de 8 filhos, resolvesse não sair de casa na tarde de 19/03/2020, em Itatim. Isso nos remete à “teoria do caos”, popularmente vivenciada, mas experimentalmente analisada no início de 1960, quando o meteorologista americano Edward Lorenz, testando um programa de computador que simulava o movimento de massas de ar, teclou um dos números que alimentava os cálculos com algumas casas decimais a menos. Esperando que o resultado mudasse pouco, transformou completamente o padrão das massas de ar. Para ele, era como se o bater das asas de uma borboleta num extremo do globo terrestre pudesse provocar uma tormenta no outro extremo (no espaço de tempo de semanas). Daí advém o chamado efeito borboleta.

Em “O Cérebro de Buda”, Rick Hanson traz através da Neurociência um diálogo com  o Budismo, explicando as origens do sofrimento no cérebro humano e traçando caminhos neuropsicológicos para o autoconhecimento e a felicidade. Ao longo da evolução, nossos ancestrais desenvolveram estratégias para garantir sua sobrevivência, como: 1) criar diferenciações (entre si e o mundo / entre um estado mental e outro; 2) manter a estabilidade (criando equilíbrio saudável entre os sistemas físico e psíquico) e 3) abrir-se a oportunidades e fugir de ameaças, obtendo coisas que propiciem a descendência e resistindo ao que ameace a prole. Contudo, dor e angústia são geradas a todo momento, pois: 1) TUDO está conectado; 2) as coisas estão em CONSTANTE MUDANÇA e 3) as oportunidades ou não são aproveitadas ou perdem seu encanto (e muitas ameaças são inevitáveis).

Essas proposições ficam clarividentes quando observamos o fenômeno atual, do micro para o macrocosmos, anunciando possibilidades e necessidades de transformação/mutação do coletivo humano a partir de um promotor que NÃO obedece fronteiras, modelo político-econômico, raça, gênero ou classe social.

A tensão ante uma guerra nuclear iminente no período da Guerra Fria deixava todos alarmados pela possibilidade de destruição do planeta, após Hiroshima e Nagasaki. Nesse mesmo período, aumentaram os relatos de “coisas vistas no céu”, descritos como OVNIs. Jung, no volume 10/4 (Civilização em Mudança), discorre:

“…Um antagonismo político, social, filosófico e religioso como jamais foi visto nesta medida divide a consciência do nosso tempo. Com a ocorrência de tamanhos opostos pode-se esperar, com certeza, que a necessidade de mediação se faça ouvir. … Podemos constatar milhares de vezes que a tensão entres os opostos, tanto na natureza, como também na alma, representa um potencial que, em qualquer momento, pode expressar-se através de uma manifestação energética. … Entre opostos psíquicos, forma-se um “símbolo unificante”, por enquanto, inconsciente. Este processo se dá no inconsciente dos homens contemporâneos. Entre os opostos, forma-se, espontaneamente, um símbolo de unidade e totalidade, não importando se ele chega ao consciente ou não. …” (págs 126-127).

Sem nunca abrir mão da criticidade e do amplo diálogo, frente à polarização do mundo, Jung faz uma interpretação contextual do tema por meio de sua teoria, advindo da função transcendente e coletiva da espécie humana de se justapor em torno de um bem comum, contrária à bipartição e aos “invasores”. OVNIs, reais ou não, emergem como projeção do inconsciente desse planeta em transição que procura sobreviver a si mesmo. Mas se os discos voadores são uma projeção, o que dizer desse fenômeno real que nos apresenta com tanta quebra de paradigmas?

Em meio às verdades científicas, modernidade líquida, pós-modernidades  e adjacências invólucras, paradoxalmente um vírus vem devolver nossa humanidade, desacelerando os ritmos e mudando a forma de se portar em sociedade, sempre agitada pelo movimento frenético de produção capitalista, pautado na busca desenfreada pelo poder e no consumismo irracional que tenta preencher os vazios interiores. Poder que se instala na contrapartida do amor, já que “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.” (Jung)

No cataclismo mortal de uma pandemia que nos impõe o “isolamento”, a conexão genuína acaba por se fazer, de modo que podemos de fato nos perguntar que tipo de comunidade estamos construindo enquanto seres humanos: seja aqui, na Espanha ou na China, que cresce de forma assustadora a cada ano (às custas de quê/quem e para quê/quem?). A quintessência do amor humano, atemporal e indiscriminado, emerge então do desespero.

“Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão.” (Jung)

Partindo dessa ótica, o vírus que traz a morte é o mesmo que renova a solidariedade entre diferentes povos. Ao paralisar as atividades cotidianas, cria um impasse político e filosófico entre promoção da economia versus preservação da saúde coletiva, nos fazendo refletir sobre qual modelo de ordenamento mundial mais equilibrado poderá ascender das cinzas dessa chama transformadora, ao observarmos líderes colocando o dólar à frente da vida. Em meio à crise, seja no fabricante clandestino de álcool-gel ou nas decisões conflitantes de figuras políticas perante um inimigo mortal, o COVID-19 presta seu auxílio na desconstrução de personas e no recolhimento de projeções (para uns, tardiamente, enquanto outros mantém-se polarizados), mas também como instrumento catalisador de manifestação da sombra diante do caos. E se impede as pessoas de saírem livremente de suas casas, também impõe questionamentos sobre a total efetividade do Estado mínimo e do liberalismo nas vias de fato do amparo social.

De um jeito ou de outro, parafraseando Jung, “qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos.” Enquanto a humanidade se perguntar apenas “por quê” e “como”, o COVID-19 será um nocivo agente infeccioso a ser superado. Outros virão, talvez piores. Mas a história tem mostrado que essa abordagem mecanicista não tem dado certo, pois é na busca do significado que reside a transcendência.

Um inimigo invisível e indiscriminado para nos fazer enxergar juntos e além: o unus mundus, como se referiam os antigos alquimistas. Quem sabe assim, travando esforços conjuntos nas diferentes áreas do conhecimento, e com base numa perspectiva teleológica, das dores e do fogo, o Homo sapiens forje metaforicamente a sua própria coroa, símbolo de elevação e iluminação, após curvar-se, humilde, à coroa de um vírus.

João Rana Vieira Sarquis – Médico clínico, graduado na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública em 2013, atuante na Estratégia de Saúde da Família em Itatim – BA.

Pós-graduando em Psicoterapia Analítica no IJBA (turma 2017).

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Referências:

– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 7/2 – O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2015.

– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 7/1 – Psicologia do Inconsciente. Vozes, 2015.

– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 16/1 – A prática da psicoterapia. Vozes, 2015.

– JUNG, C.G. Obras Completas vol. 10/4 – Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. Vozes, 2015.

– Hanson, Rick; Mendius, Richard. O cérebro de Buda – Neurociência prática para a felicidade. Editora Alaúde, 2012.

– https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/numero-de-mortes-por-coronavirus-na-italia-ultrapassa-o-da-china.shtml

– https://noticias.r7.com/saude/coronavirus-confirmados-primeiros-casos-contraidos-fora-da-china-28012020

– https://veja.abril.com.br/mundo/chineses-se-revoltam-com-morte-de-medico-que-alertou-sobre-coronavirus/

– https://www.nytimes.com/2020/02/01/world/asia/china-coronavirus.html

– https://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1438&sid=8

– https://michaelis.uol.com.br/busca?id=A8ol0

– https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-teoria-do-caos/