Clarice Lispector para meninas e meninos

A literatura infanto-juvenil encontra-se em luta para trazer ao seu público, com uma linguagem lúdica, reflexões acerca do modo de ser humano a fim de estimular seu público a ler e fazer questionamentos. Para isso, alimenta seus leitores com palavras que desnudam seus heróis e princesas, vestidos pelas velhas concepções sustentadas pelos estereótipos culturais, para as vestirem com os “andrajos” de antiprincesas e anti-heróis.

No ano passado, a editora Chirimbote lançou na Argentina duas coleções para esse público: Coleção antiprincesas e Coleção anti-heróis. No lugar das princesas e heróis, contam as histórias de figuras famosas que revelaram em suas vidas um modo de ser autêntico e sem a preocupação de lutar contra sua própria natureza para enquadrar-se no belo replicado pelas histórias de princesas e heróis. Desse modo, essas coleções aproximam-se de seu público com novas formas de representações gráficas, relatos sobre a vida dos personagens, esclarecimentos sobre as palavras usadas e explicações que deixam o texto com fácil assimilação.

Nessas histórias, em lugar dos heróis masculinos com os seus superpoderes e das frágeis princesas que dependem de um príncipe para lhes dar vida, há homens sensíveis e mulheres fortes, além das verdadeiras experiências humanas, que condizem com o dia a dia das crianças e adolescentes, trazidas nos exemplos de outros modelos de famílias: filhos de pais separados, ou do mesmo sexo, ou ainda outras adversidades que habitualmente foram deixadas de lado nesse tipo de literatura.

Dentro da coleção antiprincesas, escolhi o livro Clarice Lispector para meninas e meninos. Foi escrito por Nadia Fink e ilustrado por Pitu Saá. Ao abrirmos o livro, confrontamo-nos com um caleidoscópio de cores e textos, com diversos modelos de letras colocadas em destaque dentro de figuras geométricas com diversas formas, como é próprio da arte de romper os padrões. O que é evolução senão essa fuga dos limites impostos por uma sociedade que cria categorias para enquadrar as pessoas colocando-as para lutarem por seu respeito? A arte é liberdade e, como tal, é desordem e, enquanto existir o criador, haverá desobediência.

Nossas crianças especiais, limitadas pela constituição, podem ser estimuladas a ultrapassarem sua condição. As crianças naturais também querem sair dos seus limites e, para isso, precisam aprender a pensar. Clarice teve como instrumento de luta, para romper os limites que lhes eram impostos, as palavras. A pedido do seu filho Paulo, quando ele ainda era criança, escreveu o primeiro livro infantil: O mistério do coelho pensante. Nessa história, a narradora se dirige a Paulinho e fala sobre um coelho que tinha muitas ideias. Esse coelho pensava com o nariz e sabia fazer o que gostava: comer e fugir da gaiola. Como conseguia fugir, ninguém nunca descobriu. Mas é certo que o coelho precisava ficar preso na gaiola para poder pensar e saber sair. Quando fugia, ia visitar namorada, filhinhos e amigos. O coelho, como Clarice, conhecia os limites que foram colocados para ele, mas com o pensar, usando o nariz que retorce, sabia como conseguir a liberdade.

As crianças desenvolvem-se projetando em seus pais a dimensão do sagrado. Os pais são divindades que as encantam e de quem esperam toda a proteção. No desenvolvimento, as crianças mudam sua fisiologia, seu corpo e chegam à adolescência com uma consciência maior, que lhes tira os pais encantados, deixando-os como meros humanos imperfeitos. Elas buscam então uma identificação de grupo, em substituição a esses pais, até que adquiram sua própria identidade depois de tanto sofrer pelo luto da perda do corpo infantil.

A natureza cria, portanto faz arte. Por isso, no desenvolvimento, surge a diversidade, e os estereótipos antigos arruínam a vida do menino que quer fazer balé e da menina que escolhe o futebol. A desconstrução de gênero, tão necessária na sociedade moderna, está ainda quase inexistente na obra literária infanto-juvenil. Enquadrar-se é renunciar ao crescimento e não saber escutar as suaves e indeléveis vozes interiores que se mostram de muitas formas para aqueles que têm a sensibilidade de ouvi-las.

Muitas obras consagradas ao público infanto-juvenil suscitam hoje alguns questionamentos quanto à afinidade das suas temáticas com o que se sabe hoje sobre o desenvolvimento da criança rumo à fase adulta. Não há mais lugar para lição de moral que engessa o desenvolvimento das crianças rumo a um enquadramento que gera uma sociedade doente.

Clarice Lispector perdeu a mãe aos oito anos de idade. Em companhia do seu pai, olhava o mar e imaginava que talvez ele pensasse em sua terra distante ou em sua esposa que partira com a morte. Gostava de animais e dizia “só não gosta dos animais quem teme sua própria animalidade”. Adulta, desvestiu-se de princesa e procurou ser uma escritora ou até mesmo uma antiescritora, pois desafiava em seus escritos as normas da língua.

Na infância, somos dominados pela linguagem do inconsciente coletivo que fala por magia. Os mitos de heróis nos encantam, e pensamos que precisamos nos destacar de forma a impressionar os outros mais do que sermos fiéis ao nosso verdadeiro modo de ser e seguir o destino a cumprir. Lispector nos dá um conselho: “Respeita as tuas exigências, respeita mesmo o que é mau em ti”.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana.

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