Um episódio internacional

Por Yves São Paulo

Considerações sobre a novela de Henry James

Esta novela leve e divertida, por vezes carregada de certa comicidade nos trejeitos pitorescos de suas personagens, foi publicada pela primeira vez em 1878, mesmo ano em que o prolífico Henry James publicou o romance The Europeans e mais outras três novelas, dentre elas a famosa Daisy Miller. Aproximamo-nos aqui de algo muito semelhante ao que nos filmes é conhecida por “comédia romântica”, ainda que carregada por uma boa dose de estudo de costumes, ao encontrarmos um protagonista como Lord Lambeth, jovem aristocrata inglês, que deixa muito claro desde o princípio seu intuito por conhecer garotas americanas durante sua estadia nesse país. O alívio cômico das personagens inglesas encontra uma pausa frente a seriedade de uma moça muito bonita vinda de Boston, a irmã da anfitriã de “nossos amigos ingleses”, como se refere o narrador, Bessie Alden, garota letrada e admiradora do universo inglês.

O que é muito valioso para o leitor é passear pelas páginas de uma novela tão curta quanto Um episódio internacional, de leitura rápida, com suas personagens tão dinamicamente entrosadas em suas conversações e relações, e descobrir que existem camadas muito mais profundas a serem descobertas e descavadas por uma mente interpretativa ansiosa e sagaz. Não somente porque cada uma das personagens principais da trama se mostra pronta para desenvolver uma teoria sobre a sociedade ou sobre seu parceiro, mas também porque o narrador deixa pistas das motivações que levam cada ação a se dar da maneira como acontece – o que é particularmente interessante de pensar a respeito do desfecho do livro, mas manteremos a surpresa ao leitor.

Um episódio internacional é um divertido convite ao leitor que ainda não conhece a obra de Henry James a começar a se aventurar pelos livros do autor. E para quem já conhece este viajante americano, que como muitas de suas personagens teimava em não fincar os pés em um só lugar – ainda bem, assim podia escrever sobre os mais diversos tipos, dos mais diversos lugares – e que assim como Bessie Alden nutria certa paixão pelo universo inglês, eis aqui uma novela um pouco menos conhecida, é verdade, mas que apresenta algumas das características chave para conhecer mais a fundo este escritor: desde o tema internacional, até seu estudo da psicologia do povo americano moldada pela democracia, e suas fortes personagens femininas (arriscaríamos dizer, mais interessantes que os heróis masculinos).

Uma palavra sobre Henry James e suas viagens
Nascido em 1843, nos EUA, Henry James é parte de uma família de notáveis que conta com a presença de um irmão famoso, o filósofo pragmatista William James, ambos desenvolvendo grande admiração em torno de suas respectivas figuras e reverenciados por sua obra ainda em vida. A família James, muito bem provida financeiramente, viaja pela Europa quando Henry é apenas criança, travando alguns contatos que certamente marcaram o futuro novelista, que voltaria a visitar estes locais mais tarde em sua vida.

Estudou direito, mas nunca exerceu propriamente a profissão, deixando de lado para se dedicar à vida como escritor de ficção, publicando seus contos e novelas mais curtas em periódicos entremeados pela escrita de seus romances de mais fôlego. Ao longo de todo este período o jovem Henry James não deixou de viajar, conhecendo Roma, morando em Paris, e, ainda mais importante, conhecendo as obras de autores que viriam a marcar sua concepção literária, nomes como Honoré de Balzac e Charles Dickens, agudos observadores dos costumes nacionais e críticos das relações sociais da vida moderna.

Mas para um viajante como Henry James algo mais deveria ser posto em sua escrita, apesar da imensa curiosidade que uma sociedade como a americana demonstrasse para os europeus, e também para os intelectuais de seu próprio país. Afinal de contas, estava ali nascendo uma sociedade impondo-se como uma novidade, de homens livres e onde todos, supostamente, tinham igual possibilidade de progredir na vida – o que, em Um episódio internacional não deixa de ser apontado quando as personagens americanas se encontram em solo inglês: uma sociedade marcada pela divisão de classes hereditária.

Balzac, sem dúvida, é uma influência marcante para Henry James, que se aproveita de uma característica peculiar de seus conterrâneos para desenvolver uma das temáticas mais famosas de sua obra, o “tema internacional”. As famílias americanas mais abastadas viajavam para a Europa ou enviavam seus filhos para este continente para assim poder oferecer à sua prole uma educação erudita, tendo contato direto com os objetos de seus estudos – educação que até mesmo o próprio Henry James, como apontado, foi proporcionado.

O tema internacional
O encontro entre personagens americanas e europeias nos livros de Henry James passou a ser conhecido por seus leitores e estudiosos de sua obra pelo título de “o tema internacional”, quando há um embate entre compreensões e modos de lidar socialmente, quando certas liberdades devem ser ocultadas ou extravasadas a partir do lugar em que se encontra, ou das companhias presentes.

Um dos lemas do “tema internacional” para muitas das personagens presentes nestes livros é que, sendo estrangeiro, ao chegar a outro ambiente, em terras onde se encontra como convidado, o mais acertado a se fazer é ter cautela e observar os costumes e comportamentos locais para não extrapolar as licenciosidades dadas pelos anfitriões. Liberdades pressupostas como naturais podem ser castradas ao chegar a um novo ambiente, assim como liberdades que sempre foram impedidas na terra natal podem aparecer como novidade durante os períodos de férias em algum balneário – no caso de Um episódio internacional, a ilha de Newport.

Neste sentido, há um detalhe muito interessante na obra de Henry James que trata da perspectiva da mulher dentro desses ambientes, esta personagem que costumeiramente sofre com privações encontra centralidade nas leituras sociais de James – não se tratando somente de uma leitura social, mas principalmente a extensão psicológica destas convenções sociais. As personagens femininas encontram na obra de James seu devido protagonismo para demonstrar as mais claras diferenças entre as sociedades e os modos como as pessoas se comportam frente à marginalização feminina.

Em certa passagem de Um episódio internacional, podemos ler uma das personagens inglesas, o senhor Percy Beaumont, dizer num tom algo jocoso, ainda que indecoroso, que as mulheres inglesas estão muito mais sob o controle masculino (coisa que somente tem coragem de dizer em companhia de outro parceiro do mesmo sexo); diz isso porque se vê inconformado com as licenciosidades opinativas, da liberdade de expressão que demonstra a senhora Westgate – esta, ainda que não tão letrada quanto a irmã, não se furta de demonstrar toda sua liberdade imaginativa e criadora de teorias, que deixa as figuras masculinas do velho mundo um tanto des­confortáveis.

A partir de suas viagens, o tema internacional é certamente algo que James desenvolve vislumbrando suas leituras de Balzac e Dickens, mas especialmente do primeiro, quando as tramas sociais reverberam impacto na subjetividade de suas personagens, como bem podemos notar quando a senhorita Bessie Alden quer sair para passear em Londres, mas é censurada por sua irmã, porque na Inglaterra não é bem visto uma moça solteira andando por aí sozinha. Eis uma liberdade que se mostrava muito bem esclarecida dentro da mente de Bessie Alden, e que agora, em solo estrangeiro, ela não pode mais exercer por conta de uma convenção que foge às suas mãos.

Como posto acima: ao chegar num novo lugar, deve-se adaptar aos costumes locais, o que é também válida para a primeira parte da novela, quando os ingleses se encontram nos EUA, um cenário descrito com toda sua peculiaridade, porque o narrador toma o ponto de vista de seus visitantes, sempre abismados com tudo o que acontece ao seu redor, toda a rapidez deste país extremamente quente, visitado no último mês de verão. Liberdades privadas de um lado do Atlântico são encontradas do outro.

Pensando a democracia americana e seus impactos psicológicos
A partir da segunda metade do século XIX começaram a surgir nos EUA intelectuais preocupados em pensar seu país e os impactos que a democracia começava a ter sobre a mentalidade de seu povo. Fosse a favor ou contra um bom número destes pensadores moldou parte do que pode ser chamado de uma identidade nacional. Um dos primeiros nomes a ser evocado é justamente o de um poeta, Walt Whitman, mas não podem ser deixadas de lado figuras como Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Mark Twain, Harriet Beecher Stowe, William James e … Henry James.

O papel de Henry James é por ele muito bem estabelecido numa novela curta, escrita alguns anos depois de Um episódio internacional, chamada Pandora, quando apresenta ao seu leitor o interesse do protagonista alemão de estudar o impacto psicológico desta sociedade organizada de maneira peculiar sobre o povo ali nascido. O que para Henry James é interessante de buscar é justamente a perspectiva feminina, que apesar de ainda não conquistar seu papel central na sociedade – a senhora Westgate ressente a ausência do marido que trabalha, ainda que o compreenda, mas permanece a fazer as vezes de dama do lar – possui muito mais liberdades do que pode ser vista em outras sociedades.

O caso é que o espírito da democracia, onde todos possuiriam igualdade e estariam por todos os lugares, como as folhas de relva de Whitman, impregna todas as personagens americanas de Henry James com tamanha vivacidade que elas acreditam poder ser capazes de fazer o que bem lhes compreende e que todas as portas estariam abertas para elas. E de fato, não há impedimentos de classes, todos são muito bem-vindos a circular entre os mais diversos grupos da sociedade, o que parece estranho quando as damas americanas de Um episódio internacional chegam à Inglaterra, e especialmente Bessie Alden nota que seu amigo nobre, Lord Lambeth, não circula entre os grupos que ela acha mais interessantes: os artistas, os poetas.

As descrições dos cenários sociais, especialmente das festas, feitas por Henry James fornecem muitos detalhes que podem ser estudados por um leitor mais pertinente, porque ainda que não seja dada a devida atenção a certos detalhes, não podemos deixar de perceber que elas estão lá, marcando sua presença. É uma duplicidade, uma ambiguidade que podemos encontrar não somente em suas personagens – o que poderíamos dizer que aumenta seu lado realista – como também uma ambiguidade com relação ao tratamento de seus temas, como é o caso da democracia. Estes cenários se fazem muito bem marcados em Um episódio internacional, especialmente durante os passeios dos dois cavalheiros ingleses por terras americanas: seus passeios pelas ruas de Nova York, sua estadia num hotel de Newport, as descrições dos lobbys dos hotéis e dos restaurantes. As personagens que habitam estes cenários são apontadas por Henry James com certa brevidade, mas não podem ser vistos como mero ornamento para pintura de paisagem.

As personagens femininas de Henry James
Boston é descrita por Henry James como a cidade dos intelectuais e lugar que Percy Beumont, o mais inclinado à erudição dos dois cavalheiros ingleses, gostaria de visitar durante sua estadia. Ao invés disso, consegue entrar em contato com algumas pessoas vindas de lá, um rapaz sentado na casa da senhora Westgate com um livro em mãos, como seria de se esperar de um bostoniano, mas que a um primeiro momento não discute com o cavalheiro. É outra pessoa proveniente de tal cidade que ganha mais espaço na trama e na mente dos senhores ingleses: Bessie Alden, sempre a olhar para estas perso­nagens com curiosidade, nunca antes tendo se encontrado frente a frente um inglês, apenas em imaginação.

E a imaginação de Bessie Alden já a levou muito adiante, estando na Inglaterra antes mesmo que pudesse colocar os pés no solo da ilha europeia, por meio da leitura incessante de autores que descreviam o mundo inglês, seus lugares, seus costumes, sua história. Sua aproximação e admiração por Lord Lambeth crescem por enxergar neste membro da nobreza um espécime saído de um de seus livros queridos, mas com frequência se desaponta com este rapaz, que parece não se esforçar em coisa alguma, especialmente em conhecer os clássicos literários de sua própria cultura. O Lord já nasce com seu título e não precisa se esforçar por progredir em sua vida, porque naturalmente o fará, pelo acaso de ter nascido na família certa, algo que apesar de deslumbrar Bessie Alden, a desaponta ao não encontrar em seu parceiro a companhia de discussões aprofundadas que imaginava encontrar num alto espírito nobre.

Bessie Alden é a encarnação destas jovens personagens femininas que com frequência aparecem nas novelas e romances de Henry James, uma moça que se vale das possibilidades de liberdade que lhes são dadas em seu país e que as toma com muito gosto, em direção ao que se poderia chamar de uma emancipação. Diferente de sua irmã, que parece viver à sombra do marido ausente e que lança suas opiniões à medida que elas vêm à mente (e o discurso por ela realizado no fluxo de seus pensamentos aos recém-chegados ingleses é uma preciosa construção literária da parte de James), Bessie Alden faz diferente, costumeiramente tomando o devido tempo para pensar antes de dar uma resposta importante, interpretando o que lhe é dito e pontuando o que poderá dizer em contrapartida.

Os ingleses ficam muito curiosos frente a uma moça que se permita tamanhas liberdades, ainda que ela esteja distante de ser tão libertária quanto Daisy Miller. Não, Bessie Alden faz suas liberdades se apresentarem de maneira diferente, e cada vez mais sutis, de modo a confundir a mente de seus amigos ingleses, que a julgando pelos padrões de comportamento do velho mundo, tendem a interpretar suas incursões de inquérito sobre a vida de Lord Lambeth como uma curiosidade de moça desejando fazer um belo matrimônio. É a partir dessa dúvida que faz pairar certo espírito romântico sobre a novela, se haveria uma relação amorosa a se desenvolver entre Lord Lambeth e Bessie Alden.

O velho mundo, com suas regras obtusas, mantêm as mulheres à margem, como as devidas cuidadoras de suas famílias, devendo tomar conta somente de seu rebanho, uma posição tomada pela Duquesa de Bayswater, mãe de Lord Lambeth (uma personagem satirizada por James, e que aparentemente teria deixado alguns leitores ingleses um tanto quanto desconfortáveis). Para Bessie Alden e seu espírito juvenil com algo do frescor de Newport, é preciso um pouco mais de imaginação para libertar-se dos grilhões que prendem os pensamentos limitados, representados por Lord Lambeth e suas respostas monossilábicas. Mas não se engane o leitor, tudo isso é feito com base numa narrativa muito simples, sem floreios e sem longas incursões a respeito da subjetividade e do caráter de suas personagens, antes dando vazão aos seus próprios gestos e suas próprias falas para que a partir daí estas personagens ganhem vida e seja possível interpretar seus caminhos, suas motivações.

As divisões de classes e o lugar dos negros
A sutileza da escrita desenvolvida por Henry James para suas novelas faz com que se faça desnecessária a incursão de caráter teorético a respeito dos estudos sociais e políticos desenvolvidos por esse autor, assim como os estudos de caráter psicológico no curso da novela. Ainda assim, estão lá diversos apontamentos sobre as sociedades visitadas por suas personagens, mesmo que de maneira mais descritiva e menos especulativa. É assim que neste mundo de criação de uma nova sociedade baseada na democracia, onde as pessoas podem progredir de vida, e onde as fronteiras de classe parecem desfeitas, um grupo social frequentemente aparece sempre à margem – literalmente – e incapaz de transpor sua posição: os negros.

O primeiro que encontramos é o mordomo da casa nova iorquina dos Westgate. Permanece sempre à porta, não o encontramos em outro lugar e a brevidade deste encontro faz conhecer somente sua inclinação a ajudar, mas nesta característica disposição social de permanecer aos cantos que lhe é permitido, a margem, o espaço fronteiriço, do qual não poderá transpor – nem mesmo para acompanhar os visitantes para dentro da casa ou para o trabalho do patrão. Lembra, assim, outra passagem, de outra novela, quando as protagonistas de Pandora fazem travessia por rio e lá estão os negros, os ribeirinhos, à margem do rio – uma imagem que por si só diz muito.

Em um segundo momento, encontramos não um, mas um grupo num restaurante, novamente na condição de serviçais, observando as relações que se dão entre os clientes e esperando para poder fazer a travessia entre o salão principal e a cozinha. A senhora Westgate em certo momento aponta para as classes inglesas que seriam intransponíveis, sendo que quem nasce em uma estaria fadado a permanecer nela até o fim de sua vida, como se vivessem num sistema de castas semelhante àquele de suas colônias. Mas o que poderíamos enxergar nesta colocação da senhora Westgate é que também nos EUA existem certos grupos fadados a permanecer frequentemente naquela mesma classe inferior pelo simples acaso do nascimento.

É bem verdade que o espírito democrático permite às mulheres americanas dar suas opiniões sobre assuntos importantes, e até mesmo a juntar reuniões para resolver importantes assuntos empresariais e políticos – novamente é o caso de certas reuniões narradas em Pandora – o que passa a impressão de possibilidade de progressão de vida, ou melhor, progressão de classe, para manter o termo dado pelas personagens americanas à divisão da sociedade britânica, mas esta progressão não é permitida a todos, sendo que o negro, tendo nascido negro, permanecerá como o serviçal nos cantos dos espaços de lazer das altas classes.

O sopro de positividade realmente permanece com as personagens femininas mais jovens, carregadas de certa inocência, como Bessie Alden, e que conseguem passear por este mundo de divisões como se estivesse a ignorá-las, o que ela faz em muitos casos exatamente por conta de sua inocência. Esta inocência que é permitida a uma jovem bostoniana letrada, devoradora de livros, que se vê extremamente desconfortável quando a bufonaria da Duquesa se impõe à sua frente para analisá-la como objeto de posse. É a emancipação que a iluminação fornecida pelos livros de Bessie Alden não deixa seu espírito ser abatido por este encontro, ainda que sua inocência fale alto.

*Yves São Paulo é doutorando em filosofia na UFBA. Autor do livro A metafísica da cinefilia (Editora Fi).

Prefácio do e-book Um episódio internacional, de Henry James.

*Texto e foto publicados no site www.aterraeredonda.com.br, gentilmente cedido pelo autor